Foto: Vania Wolf/Wikimedia CommonsA Sala São Paulo, sede da Osesp, a sinfônica do estado; sala foi construída no antigo pátio da Estação Júlio Prestes

A Sala São Paulo, a música e a vida interior

O pátio interno, imagem da vida interior, virou casa da principal orquestra brasileira. Ainda há uma política cultural voltada para as coisas do espírito
10.03.23

Na quinta-feira passada, dia 2, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo abriu sua temporada de concertos com a Sinfonia nº 3 de Mahler, regida por Thierry Fischer — ele é também o novo diretor artístico da orquestra. A temporada se inicia sob uma nova gestão do governo do estado de São Paulo, principal mantenedor da fundação que gerencia a Osesp. Pela primeira vez em 28 anos, o estado não será administrado pelo PSDB. A secretária de Cultura, Marilia Marton, registrou a presença do governador, Tarcísio de Freitas, que foi bastante aplaudido. O diretor executivo da orquestra, Marcelo Lopes, disse que o repertório escolhido não poderia ser mais adequado, apesar de ter sido selecionado com dois anos de antecedência.

Com cerca de uma hora e 39 minutos, a Sinfonia nº 3 de Mahler é a maior, em extensão, de todo o repertório sinfônico, e foi executada (como deve ser) sem intervalos. Não deixa de ser curioso que um repertório tão especializado e difícil (por sua complexidade e extensão) tenha sido tão bem acolhido pelo público brasileiro, com a Sala São Paulo (foto) quase completamente lotada. Chama a atenção também que um discurso puramente musical consiga prender a atenção do público — não necessariamente especializado —  na sala. A música, a mais etérea das artes segundo o crítico Eduard Hanslick, não tem uma narrativa poética objetiva. Na verdade, a música em si não expressa nem mesmo emoções, como se diz comumente, mas a fantasia. “A obra musical surge da fantasia do artista para a fantasia do ouvinte”, diz Hanslick —exatamente porque ela nos conecta com uma vida interior. Durante um concerto, nossos pensamentos vagueiam, surgem lembranças, é possível repensar toda uma vida. É um dos poucos momentos da vida contemporânea em que não é possível se distrair com o celular. O ambiente impõe esse respeito: é necessário silêncio, e os celulares, por sua luminosidade, não devem ser usados.

É salutar que a Sala São Paulo tenha sido construída no antigo pátio interno da Estação Júlio Prestes, obra do arquiteto Cristiano Stockler das Neves. O pátio interno é a imagem arquitetônica da vida interior. Existe uma dissertação de mestrado escrita pela arquiteta Monise Campos Pereira — que infelizmente ainda não virou livro — cujo título é “O pátio interno como arquétipo”. Nela, a autora usa o conceito de arquétipo de Carl Jung para entender a recorrência desse elemento arquitetônico na história, recorrência tão grande que “é uma constante na arquitetura de inúmeras civilizações ao longo de uma longa linha histórico-temporal”, como ela escreve. O arquétipo, segundo Jung, seriam imagens primordiais, não propriamente ideias inatas, mas caminhos virtuais herdados pela humanidade de seus antepassados. São sedimentos de experiências, constantemente revividos pela humanidade.

De fato, o pátio é um lugar protegido do mundo exterior e relativamente preservado das intempéries, porém aberto ao céu. Tem-se conhecimento de pátios internos na China e na Índia, datados de aproximadamente 3.000 a.C. Na Grécia e no Império Romano, existiam pátios internos em casas e edificações públicas. Os pátios internos estão em mosteiros e conventos, na arquitetura do Renascimento e até na arquitetura moderna. O pátio interno onde hoje fica a Sala São Paulo foi projetado, como escrevi acima, por Cristiano Stockler das Neves, fundador do curso de arquitetura do Mackenzie e ferrenho opositor da arquitetura moderna. É de sua autoria o prédio original da Pinacoteca, que não chegou a ser terminado, e os Palacetes Prates, no vale do Anhangabaú, obras-primas do ecletismo arquitetônico, infelizmente destruídos. O pátio interno da estação era condição ideal para a construção de uma sala de concertos

A Sala São Paulo foi inaugurada em 9 de julho de 1999 com a Sinfonia nº 2 de Mahler, cujo título, simbólico, é Ressurreição. O pátio interno, imagem arquetípica da vida interior, virou casa da principal orquestra brasileira. Ela é testemunha de que ainda existe uma política cultural voltada para as coisas do espírito.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista, escritor e fotógrafo brasileiro.

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  1. Complementando meu comentário anterior, a inauguração da Sala São Paulo foi num sábado, 03 de julho de 1999, se não me falha a memória. Foi um dia especial para os trabalhadores da obra e seus familiares.

  2. Na realidade a Sala São Paulo foi inaugurada um pouco antes, não me lembro bem da data, com a música Construção de Chico Buarque e a presença do governador Mário Covas. O maestro era Roberto Minczuk.

  3. Nunca fui e provavelmente nunca irei já que não me passa pela cabeça ir a SP, mas folgo em saber que ainda há lugares onde a cultura pode respirar neste país.

    1. Sim, puro encantamento. Seus textos textos também. Parabéns!

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