Aline Sales/AMCS/MPPE via FlickrO Nordeste tem uma cultura mais brasileira, e ao mesmo tempo mais regional e mais tradicional

Duas faces do Brasil

Tenho viajado pelo país por razões profissionais e, por isso, me chama atenção o contraste entre o Sul e o Nordeste do Brasil
26.04.24

Tenho viajado pelo país por razões profissionais e me chama atenção o contraste entre o Sul e o Nordeste do Brasil.

Os estados do Sul do país são mais desenvolvidos, as cidades são mais organizadas, mais limpas, existe uma diferença menor entre o campo e a cidade – as cidades do Nordeste são altamente concentradas, e o campo mais subdesenvolvido.

Tudo isso tem razões que remontam à colonização das respectivas regiões. O Sul teve a ocupação muito marcada pela imigração mais recente, as comunidades de imigrantes eram praticamente autônomas.

Diz Antonio Risério no livro A Cidade no Brasil: “Se havia famílias que não saíam de suas propriedades rurais, mais raramente ainda as pessoas se dirigiam ao centro de Curitiba — e nunca ou quase nunca iam a uma colônia etnicamente distinta da sua. A vida social de um grupo de imigrantes de determinada origem étnica se passava, em sua quase totalidade, no interior desse mesmo grupo.”

o Nordeste foi muito marcado pelo resultado da monocultura do açúcar, onde primeiro desenvolveu-se o Brasil. “O perfil do Nordeste é o perfil de uma paisagem enobrecida pela capela, pelo cruzeiro, pela casa-grande, pelo cavalo de raça, pelo barco a vela, pela palmeira-imperial, mas deformada, ao mesmo tempo, pela monocultura latifundiária e escravocrática; esterilizada por ela em algumas de suas fontes de vida e de alimentação mais valiosa e mais puras; devastada em suas matas; degradada em suas águas”, diz Gilberto Freyre no livro Nordeste.

Um dos efeitos colaterais da monocultura foi a seca que levou a uma migração para as capitais do próprio Nordeste (o que aumentou a concentração urbana) e para outras regiões do país.

Outra característica que ficou muito marcada no Nordeste é o desprezo pelo trabalho manual. Essa é uma herança da escravidão, que desenvolveu-se especialmente no Nordeste, nos engenhos de cana de açúcar. Já nos estados do Sul, com a imigração mais recente vindo de países onde o trabalho manual é muito valorizado (como a Alemanha), essa característica parece não ter prevalecido.

Certa ocasião fui entrevistar o antropólogo Antonio Risério na ilha de Itaparica, onde ele mora, na Bahia. Aluguei um Airbnb e peguei um Uber para o local. Mas tal era a situação da rua que levava à casa onde havia o Airbnb, cheia de lama, que o carro não entrou. Tive que ir à pé. Estava de bota mas uma hora a lama era tanta que não podia passar e resolvi voltar. Esperei pacientemente um taxi passar na rua principal.

Pedi para ele me levar ao hotel ou pousada mais próximo. Cheguei a uma pousada à beira mar, um lugar até bonito. A pousada tinha o preço de hotel convencional, mas era um lugar que parecia abandonado. Estava cansado demais para procurar outra. O dono – um alcoólatra mal vestido – levou-me ao quarto que tinha uma cama feita de tijolos com um colchão em cima. Tudo isso me fez pensar no subdesenvolvimento do lugar, fruto do ódio ao trabalho manual. Nunca vivi nada parecido nas tantas vezes que fui ao Sul.

Mas existe uma coisa que o Nordeste é imbatível: na produção de cultura. Dos estados do Nordeste surgiram alguns dos mais importantes escritores, poetas, músicos brasileiros – o que não tem equivalente no Sul. E essa cultura produzida no Nordeste é mais ancorada nas tradições brasileiras profundas, que remetem à península ibérica – sendo o Movimento Armorial, criado por Ariano Suassuna, o exemplo mais famoso disso.

É como se as características do Brasil fossem mais aprofundadas no Nordeste. E aí já existe outro paralelo: os estados do Sul tem uma relação de abertura maior com o exterior, tanto pelas fronteiras próximas com outros países, quanto pela imigração mais recente vinda da Europa. O Nordeste tem uma cultura mais brasileira, e ao mesmo tempo mais regional e mais tradicional.

Andando pelas cidades dos estados do Sul elas chamam atenção pela organização comparado a outras regiões do Brasil. Mas elas são excessivamente novas, e mesmo o que é antigo parece um pouco artificial. Nas cidades do Nordeste, no seu aspecto caótico, que muitas vezes parecem cidades do Oriente Médio, de repetente você dá de cara com uma igreja barroca com altar folheada a ouro com mais de trezentos anos.

O Nordeste tem qualidades mais contemplativas e mais próximas da produção de arte e cultura, enquanto o Sul tem qualidades mais práticas. São características distintas que poderiam muito bem ser combinadas, formando um país com uma maior integração.

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta

 

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  1. Excelente artigo. Citações de Gilberto Freyre e Antônio Risério muito pertinentes. Como um amante das igrejas barrocas do NE, concordo com a visão do autor to artigo.

  2. É bom lembrar ainda que Lule - Papi dos póbri, já teve 3 oportunidades para mudar a realidade do Nordeste. Esse ex-metalúrgico tem vontade política para incentivar o Turismo? seria uma grande fonte de renda para os nordestinos, até valorizando mais a cultura, ela atrai os Europeus, principalmente. As praias nordestinas encantam, e haveria muita mão de obra para enriquecer a região. Mas, a ideia é vender a facilidade das cestas básicas, vale-isso, vale-aquilo. É o estímulo à preguiça.

  3. Diante do que se coloca parece difícil haver uma integração pois são culturas muito distintas. Mas, deve-se lembrar que o Sul tem abrigado, cada vez mais, os nordestinos que fogem da pobreza, ainda que sua cultura artística seja mais marcante que a do Sul. Por outro lado, os imigrantes, com sua formação europeia, conseguiram superar a pobreza e construíram uma cultura própria, não excludente. Paulo Leminski, curitibano, interagiu com Caetano Veloso, Arnaldo Antunes, Zeca Baleiro entre outros.

  4. Me pergunto qual a finalidade do artigo? Ter o melhor dos dois mundos? Estranha a ideia de um Nordeste que representa melhor o que são as características profundas do brasileiro. Certamente, represente as características dos brasileiros de lá do Nordeste. Não me parece fazer sentido um recorte entre regiões em que uma delas é mais representativa da identidade brasileira do que a outra. Acredito que o brasileiro é exatamente a mistura de raças submetida às condições econômico-geográficas na sua

  5. Nordestino afirmo sem ódio e sem medo ... ainda a comer pé e rabo de porco nas senzalas, submissos a "zelitis" oportunistas e escravocratas somos hoje o lixo da pocilga que chamam república.

  6. Nordestino não tenho o menor preconceito em afirmar SOMOS O LIXO do chiqueiro mal cheiroso que este país se tornou e ainda estamos comendo rabo de porco nas senzalas a que "zelitis" sujas e oportunistas nos condenaram.

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