Beto Barata/PR via FlickrEscadaria do Itamaraty: É preocupante que a postura diplomática do Brasil se mostre objetivamente favorável às autocracias

A nova divisão do mundo e a postura diplomática do Brasil

27.04.24 10:44

Está em curso, e isso já é bastante nítido, uma nova divisão do mundo, talvez muito pior e ainda mais ameaçadora para a sobrevivência do mundo civilizado do que aquela que ocorreu no “Norte Global” dos anos 1930, entre as democracias de mercado do mundo ocidental — com vários pacifistas no comando das principais potências— e as potências fascistas, expansionistas e belicistas que se opunham a esse poderio econômico e político e que pretendiam contestar essa hegemonia pela força das armas.

Assim o fizeram — aliás o Japão contra a China desde 1931 e 1937, e os dois fascismos europeus na Espanha desde 1936, em face da pusilanimidade das potências ocidentais em 1938, quando deveriam ter confrontado os agressores — e o mundo foi precipitado num conflito global que simplesmente dobrou o número de vitimas e o volume da destruição material da Grande Guerra, agregando a tudo isso um genocídio ainda pior do que o contra o povo armênio na Grande Guerra, que foi o Holocausto contra o povo judeu, por nenhum outro motivo que não o de ser judeu.

O Brasil, como na Grande Guerra, afirmou sua neutralidade na contenda de meados do século até onde isso foi possível, confrontando a postura Rui Barbosa que, desde o inicio, e expressamente em 1916, dizia que não se pode ser neutro entre a Justiça e o crime. Foi preciso um chanceler do caráter de um segundo Barão, Oswaldo Aranha, para nos colocar do lado certo quando as escolhas se tornaram inevitáveis, aliás relembrando, em 1942, a postura de Rui em 1916.

No segundo pós-guerra, o Brasil construiu, com hesitações ao início, um postura diplomática de neutralidade e de real autonomia na politica externa, em face da grande divisão do mundo na primeira Guerra Fria e das contendas interimperiais do período 1946-1989. Foi positivo para o seu grande objetivo prioritário, o desenvolvimento econômico e social.

O Brasil, por sua tradição de autonomia e de independência na política externa, não deveria agora tomar partido na nova contenda entre as grandes potências desta segunda Guerra Fria, que já se tornou parcialmente quente em alguns pontos o planeta, notadamente (e novamente) na Europa, em especial na Ucrânia (mas já tinha começado, inclusive por meios militares, na Georgia e na Moldova). A Rússia repete os descaminhos dos impérios centrais na Grande Guerra e doas potências fascistas agressivas dos anos 1930, e Putin é o mais próximo que temos de um novo Hitler. A China flexiona seus músculos na Ásia e o faz na direção de uma ilha que nunca pertenceu à República da China (ela estava sob dominação japonesa desde 1870, até 1945) e que tampouco pertenceu à RPC, instalada no continente, desde 1945 e até 1949, quando o PCC vence a guerra civil contra o Kuomintang no poder na RC, e nos anos seguintes até 1972, quando Taiwan deixa de representar o povo chinês no CSNU, e a RPC proclama susserania sobre esse antigo domínio do Império do Meio.

O Brasil rompeu relações diplomáticas com Taiwan em 1974, e passou a reconhecer a doutrina da RPC de soberania sobre Taiwan, mantendo um escritório comercial na ilha. Durante todo esse tempo, seja sob a ditadura militar, seja na redemocratização, o Brasil manteve sua postura de autonomia e independência nas diferenças entre as grandes potências.

Lula, mal assessorado, preconceituoso, já escolheu o seu campo, o das autocracias, e isso implicitamente desde o primeiro mandato. Ele o faz agora explicitamente no terceiro mandato, mas já tinha havido um grande erro estratégico, em nome do Brasil, quando da invasão e anexação ilegal da península ucraniana da Crimeia em 2014 e o terceiro governo petista permaneceu completamente indiferente em face da grave violação da Carta da ONU perpetrada pela Rússia. O erro estratégico se repetiu desde a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022, sob o governo Bolsonaro, e assim permaneceu no governo lulopetista.

Por razões diferentes, mas com com consequências similares, ambos os governos, se mostraram indiferentes à grave guerra de agressão contra um país soberano, se tornando, portanto, objetivamente favoráveis à posição do violador da Carta da ONU, que de resto passou a cometer crimes de guerra, contra a paz e contra a humanidade, numa série de atrocidades jamais denunciadas incisivamente por qualquer um dos dois governos brasileiros.

Lamentável que seja assim, e as lideranças democráticas do Brasil deveriam alertar Lula por essa escolha contra a natureza do Brasil democrático, contrária às cláusulas de relações internacionais da Constituição de 1988 e afrontosas a quaisquer normas do Direito Internacional, começando pela Carta da ONU, assim como em total contradição com princípios e valores de nossas tradições diplomáticas longamente estabelecidas.

Num momento em que o mundo se aproxima de um novo clima de tensão bélica entre grandes potências opostas, é preocupante que a postura diplomática do Brasil se mostre objetivamente favorável a um dos campos, o das autocracias, contra os sentimentos democráticos da maioria da nação brasileira. Mesmo o autocrático Estado Novo permaneceu fiel à doutrina jurídica consagrada do Itamaraty, quando, em 1939 e em 1940, os dois aliados totalitários unidos por um pacto de não agressão violaram a soberania e anexaram ilegalmente territórios da Polônia e dos três Estados bálticos, países com os quais mantínhamos relações diplomáticas regulares. A ditadura do Estado Novo não reconheceu a usurpação da soberania dessas nações, o que não ocorreu em relação à Crimeia em 2014 e não parece ocorrer em relação à Ucrânia desde 2022.

Momento extremamente baixo e contrário às nossas tradições diplomáticas de pleno respeito ao Direito Internacional e em defesa da paz e da segurança internacionais. O Brasil merece retornar à postura de autonomia e independência de sua política externa e de neutralidade de sua postura diplomática em face das contendas interimperiais. Não é o que se observa atualmente.

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor

 

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  1. Tenho dúvidas se o Lula é mal assessorado ou é teimosia. Quer manter sua voz como a única. Tá certo que, se assessorado por Amorim ou Gleisi os resultados seriam os mesmos, ou melhor, estão sendo. que pobreza de espírito desses petistas ultrapassados, para não dizer mais.

  2. Ao proliferar como ratos, somos oito bilhões onde só cabem cinco, o ser humano assassinou seu maior bem a liberdade e o destino da humanidade é a escravização sob ditadores de tudo capazes e o Brasil sob a ditadura cínica dos três poderes poderes a achacar e humilhar um povo ignorante e submisso já colocam os manés bem à frente dos branquelos europeus ainda sob o iluminismo ... é do Brasiiiiiiiil !!!

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