Foto: Ben Brooksbank (cc-by-sa/2.0)Cena de rua em Londres, na década de 1950 - Foto: Ben Brooksbank (cc-by-sa/2.0)

Meu maior aprendizado

Ele se deu de 1952 a 1954, quando minha família se mudou para Londres, onde meu pai obteve uma bolsa de pós-graduação na London School of Economics
25.04.24

Como volta e meia comento em minhas crônicas que, em meados dos anos 1960, fiz um curso de mercado de capitais (portfolio management) na Graduated School of Business Administration da New York University, muita gente pode supor que foi aí que houve meu primeiro, e mais importante, aprendizado.

Acontece que isso se deu doze anos antes (mais precisamente, de 1952 a 1954), quando minha família se mudou para Londres, onde meu pai obteve uma bolsa de pós-graduação na London School of Economics.

Como pretendo narrar toda a nossa história na Europa do início dos anos 1950, talvez o espaço desta crônica não seja suficiente. Nesse caso, prosseguirei na próxima semana.

Para começar, naquela época viajar de avião era muito caro e pouca gente podia se dar ao luxo de fazer isso. Mas não no nosso caso, em que as passagens estavam sendo pagas pelo patrocinador: Nações Unidas.

Como minha mãe achou que o Natal em Londres deveria ser triste (a Segunda Guerra acabara apenas sete anos antes e a cidade ainda estava bem destruída devido aos bombardeios alemães), ela resolveu que passaríamos a festa em Madri.

Saímos do aeroporto do Galeão dois dias antes do Natal num quadrimotor a pistão Argonaut da British Overseas Airways Corporation (Boac) com capacidade para 44 passageiros.

Quem quiser saber como é um Argonaut, basta ver, num dos primeiros episódios da série The Crown, a viagem da rainha Elizabeth II, então princesa de Gales, numa viagem ao Quênia.

A primeira parada, para reabastecimento, se deu no Recife, onde todos os passageiros tiveram que desembarcar, como era costume na época.

De lá, o Argonaut iniciou a travessia do Atlântico. Pousamos em Dacar, no atual Senegal, na época colônia da França (África Ocidental Francesa).

Do aeroporto de Dacar, me lembro de três coisas: a emoção que senti ao pisar pela primeira vez em solo estrangeiro; do calor reinante, apesar de ser duas horas da madrugada; de uns besouros enormes que circulavam por todos os lados.

A etapa seguinte era Lisboa, após um longo voo sobre a imensidão do Saara.

Nunca me esquecerei da beleza do amanhecer nas areias do deserto.

O avião não pôde fazer a escala em Lisboa por causa de mau tempo na capital portuguesa. Então fomos diretamente para Madri, que era o nosso destino.

Se minha mãe achava que o Natal em Madri era alegre, se decepcionou completamente.

Embora a Guerra Civil Espanhola já tivesse terminado havia 13 anos, o país era uma miséria só. Apesar do frio (estávamos no inverno europeu) havia crianças descalças pedindo esmolas na rua.

Como a peseta não valia nada, uma estadia de cinco pessoas num dos melhores hotéis (ou menos piores) da cidade custava apenas um dólar, dólar esse que também pagava um refeição para toda a família.

No dia 26 de dezembro de 1952, viajamos de Madri para Londres num DC-3 da British European Airways (BEA) com escala em Bordeaux, na França.

Nesse voo, em meio à forte turbulência sobre o golfo de Biscaia, vomitei a ponto de encher um saco de enjoo.

Minha primeira visão de Londres foi através da janelinha do próprio avião, na reta final de pouso, quando vi um daqueles avisos luminosos amarelos, que existem até hoje, com a inscrição “Keep left”.

Fomos de ônibus do London Airport até um terminal no centro da cidade, de onde seguimos para um hotel na rotatória da estação de underground (tube) South Kensington.

Jantamos num restaurante chamado Dino’s, que ainda existe, passados 72 anos. Toda vez que vou à Inglaterra visitar minha filha que mora lá, dou um jeito de comer no Dino’s para matar saudades.

O prato: sempre Ham & Eggs and Chips, que foi o que comi da primeira vez.

Após alguns dias no hotel, nos mudamos para um apartamento em Kensington Olympia, a três estações de distância de South Kensington.

Em Londres, quase todas as crianças cursavam o primário em escolas públicas. Mas como minha mãe (sempre ela) fazia questão que os filhos estudassem em colégios católicos, minha irmã foi para o Sion. Meu irmão Sérgio e eu fomos matriculados num semi-internato católico em Hampstead, do outro lado (norte) da cidade, chamado St Anthony’s School. Foi lá que aprendemos a falar inglês.

Dele, guardo boas e más recordações.

Entre as boas, ser titular do primeiro time de futebol e praticar vários esportes: críquete, atletismo, boxe e natação.

Entre as más, o almoço, que era sempre a mesma coisa: carne de carneiro e repolho (por causa do racionamento pós-guerra que vigorava no país). Como éramos obrigados a esvaziar o prato, Sérgio e eu enchíamos de repolho o bolso do paletó.

Havia também as sessões de palmatória, nas quais os irmãos Sant’Anna eram sempre castigados.

Sérgio e eu nos orgulhávamos de jamais chorar, embora o professor caprichasse nas palmadas em nossas mãos, que ficavam inchadas.

A gente sabia que se contássemos em casa a respeito desses castigos corporais, nossos pais nos tirariam do colégio. E não queríamos deixar de jogar futebol, com campo gramado, rede nos gols, juiz, bandeirinhas e tudo mais.

E assim transcorria nossa vida em Londres.

Continua na próxima semana.

 

Ivan Sant’Anna é escritor e investidor.

[email protected]

 

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  1. Ah!!!! Que dureza esperar uma semana para ler a continuação do texto e saber qual foi esse "mais importante aprendizado". Elisa C M Seixas

  2. Aguardarei com ansiedade a próxima semana... Enquanto isso, sugeriria ao autor o autobiográfico "O ciclo gestatório de um Homem", um discreto cartapácio de 700 páginas (os franceses o chamariam de "roman fleuve), em e-book na Amazon e em papel no Clube de Autores.

    1. Porque não publicaram meu comentário sobre a coluna do SANT'ANNA?

    2. Jamais estudei em internato e ainda levar palmatória ! Cruzes Ivan Santana, eú fugiria na primeira e ainda diria impropérios ao agressor!!!

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