Foto: Wallace Martins/Futura Press/FolhapressO robusto Flávio Dino: não, jamais, não foi ele que pegou a sua batata

Fui eu que comi. Estou no centro da crise da fome

Segundo o infalível senhor presidente, a falta de alimentos de muitos vem do muito que comem uns poucos
10.03.23

É melhor pular os preâmbulos e falar de vez: sou um dos responsáveis pela fome que assola o Brasil. E digo o porquê: segundo o excelso e, pelo tom mavioso das loas, infalível senhor presidente, a fome de muitos vem do muito que comem uns poucos. Ora, sendo eu um indivíduo corpulento, de ossos grandes, isto é, sendo eu gordo (“gordo como um ministro”, diriam os debochados; mas eu, que nunca debocho de nada nem de ninguém, digo só gordo), segue-se que ando comendo a comida dos outros. É verdade e, como dizem, posso provar.

Puxe aí o amigo pela lembrança: sumiu-lhe alguma batata do prato enquanto você sorria para o tipo faceiro a seu lado? Eu comi. Eu ou o Flávio Dino. (Não, péra: o Flávio Dino não, o Flávio Dino jamais – eu, eu é que comi.) Evaporou-se uma das salsichas do seu dogão de esquina enquanto você, pasmado, mirava um arranha-céu colossal? Eu furtei. A embalagem dos frios foi aberta e sete fatias de salame hamburguês de primeira qualidade desapareceram enquanto você catava as moedas no caixa do supermercado? Eu levei. Metade do pepperoni que ornava sua pizza sumiu enquanto você pagava o motoboy? Eu papei. Três quartos dos seus ovos mexidos desapareceram enquanto você lia a capa do jornal e gritava “Mas não é possível! Não é possível!!!”? Fui eu, sim. Faltavam dois kiwis na sua sacola quando você voltou da feira? Eu os aliviei. É isso, amigo: aquele ronco matinal na sua barriga se deve ao bife que eu furtei do prato do seu jantar. É por isso que você é magro, ó, famélico da terra.

Mas tem mais. Aqui é Brasil e sempre tem mais. Eu sou diabético, o que quer dizer que também andei abafando as sobremesas dos brasileiros. Uma dentada inesperada no seu sorvete: eu. Três gomos a menos na sua mexerica (ou, se você for gaúcho, na sua bergamota): eu. Sumiram as camadas de cima do seu mil-folhas: eu. Caramba, já comeram metade do seu bolo de aniversário: eu. Acabou o doce de leite argentino: eu. Tinha gelatina e não tem mais: eu. Sumiu o pavê? Eu. Não era pacumê?

Daí o amigo se convença: estou no centro da crise da fome. Sou toda uma nuvem de gafanhotos, sou um cavaleiro da escassez, um paladino do raquitismo alheio. Mas estou arrependido e quero me emendar. Vou começar um regime. Severo, mas democrático. Se cada gordo que me lê (tem gordo aí entre os leitores, tem? Vai daqui um abraço) fizer a mesma coisa, a médio prazo a fome no Brasil já era. O mínimo que eu ganho é o dedo dos vizinhos me apontando na rua e dizendo:

— Lá vai ele: magro como a Justiça.

Pois não vá agora o amigo achar que a Justiça, até ela, anda roubando da marmita do trabalhador.

* * *

Mas péra aí: magro? Eu tenho mesmo que ficar magro? A minha gordura é do mal, ou me induz ao mal? É ela que me faz criar famélicos? Vejamos.

O assunto talvez já tenha amornado – ou, como dizem em Portugal, arrefecido –, mas é recente a grita em torno desse negócio woke de andarem reescrevendo os livros de Roald Dahl, que escreveu A fantástica fábrica de chocolate. Se o amigo viu o filme (é claro que viu), lembra que o autor tinha o hábito de fazer rir caçoando de pessoas feias, pessoas velhas e doentes, pessoas de peruca, pessoas com dentaduras, pessoas narigudas, pessoas esqueléticas, pessoas gordas. Acontece que, como dizem as reescrituras, não tem problema ser feio, ser velho e doente, usar peruca ou dentadura, ter narigão ou ser esquelético ou gordo: problema mesmo é querer fazer graça com isso.

Bem, se não tem problema ser gordo – e quem o diz é o mundo woke, muito acatado na formulação das políticas públicas do novo governo velho –, então eu talvez não seja o culpado pela fome do país. Então eu talvez esteja sendo injustiçado. Então eu talvez esteja sendo alvo de preconceito. Então eu talvez esteja sendo alvo de, oh, meu Deus, gordofobia.

Eis aí a sinuca de bico. Quem tem razão: o mundo woke ou o senhor presidente? E eu sou o que: uma minoria ou um monstro? Sou digno de compreensão ou de bronca? Nem eu mesmo sei.

Por vias das dúvidas, adeus regime: vou continuar gordo e rapinando o rango dos desfavorecidos. E, da próxima vez que o senhor Presidente me acusar de cavaleiro do apocalipse, zás: vou cancelá-lo. Ou melhor: reescrevê-lo. Ao melhor estilo woke.

 

Orlando Tosetto Júnior é escritor

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  1. Lulinha é,em sua essência, anti-woke, mas, ao mesmo tempo, incancelável. Tremendo paradoxo. PS: nem mexerica nem bergamota, tangerina!

  2. "Acordei." Este é o significado literal da palavra woke, passado do verbo wake, que significa "acordar, despertar". Mas recentemente o termo ganhou significados bem mais amplos. Na gíria norte-americana, ser ou estar woke pode indicar com quais posturas políticas você se mais se identifica. O uso de woke surgiu na comunidade afro-americana. Originalmente, ele queria dizer "estar alerta para a injustiça racial". Informação da BBC Brasil. Para os que como eu, não sabia o q significava woke.

  3. Não se preocupe. O presidente já culpou os que têm olhos azuis pela miséria do país. Agora é a vez dos gordos. Qualquer um menos os políticos como ele que juntam fortunas em detrimento dos famelicos.

  4. Não só por peso na consciência, mas por falta de dinheiro, também estou emagrecendo. O que é ótimo para mim que preciso tirar uns quilinhos da balança. Adeus Kopenhagen, meu chocolate de páscoa será substituído por um saudável feijão com arroz.

  5. Interessante tema para a Quaresma, já que o presidente, como cristão que diz que é, deve estar fazendo jejum e abstinência. Pois então repito o lema da campanha da fraternidade deste ano ao presidente: "dai-lhes vós mesmos de comer". Sim, dai-lhes, presidente, e a nós todos, aquela picanha prometida na campanha presidencial. Da minha parte prometo eu que a deixarei congelada até a Páscoa..

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