Arquivo pessoal"Tudo isso gerou crises de ansiedade, estresse, transtornos alimentares e de sono"

“Não me sinto um apátrida”

O ex-preso político nicaraguense Alex Hernández fala sobre o desterro e o sentimento de ter tido sua nacionalidade retirada pelo ditador Daniel Ortega
10.03.23

O estudante de administração de empresas Alex Hernández estava entre o grupo de 222 presos políticos desterrados pela ditadura nicaraguense de Daniel Ortega, no dia 9 de fevereiro. Após permanecer no cárcere por um ano e meio em sua segunda detenção, ele foi colocado em um avião e enviado para Washington com outras pessoas consideradas como “traidores da pátria” pelo regime. Todos perderam a nacionalidade nicaraguense e não poderão voltar ao país.

Em entrevista para Crusoé, Hernández diz que a retirada da nacionalidade não o impede de continuar se sentindo um nicaraguense. “Eu não me sinto um apátrida. Não sou. Minha condição de nicaraguense é dada pela Constituição, que diz que tenho esse direito porque nasci no meu país“, diz ele, que está vivendo na casa de amigos no estado americano de Maryland. “Minha identidade vai continuar brotando dos meus poros, do meu ser, da minha essência.” Nesta semana, após Argentina, Chile, Colômbia, México e Brasil oferecerem receber os nicaraguenses que perderam a nacionalidade, Hernández diz que está estudando as possibilidades.

Aos 32 anos, esse jovem que se considera de centro na política conta como foi ter sido perseguido pelo governo, narra as arbitrariedades que sofreu e explica as últimas medidas dos ditadores Ortega e da primeira-dama e vice-presidente Rosario Murillo. Hernández fala ainda sobre como está sendo retomar a vida no exterior. “Meus registros acadêmicos foram apagados a mando do governo. Estou numa situação que nunca pensei estar. Mas estou em liberdade e tenho vontade de seguir adiante”, diz ele.

 

Por que o ditador Daniel Ortega decidiu desterrar 222 presos políticos, incluindo o sr.?
Ortega já consolidou sua ditadura na Nicarágua. Ele se aferrou ao poder após roubar as eleições presidenciais de 2021, prendendo todos os seus rivais, e depois ampliou seu poder em todos os departamentos e municípios, usando de fraudes e muitas artimanhas. Depois disso, nós, presos políticos, acabamos nos tornando um grande peso para ele. Ortega passou a sofrer pressão internacional, com a aplicação de sanções contra ele e pessoas próximas. Então, já não fazia mais sentido para ele seguir conosco dentro dos cárceres, gerando esse peso político. Nossa prisão causou até um debate em sua base partidária. Membros da Frente Sandinista de Libertação Nacional expressaram insatisfação com a nossa situação e com as arbitrariedades a que estávamos sendo submetidos.

Mas por que Ortega também decidiu tirar a nacionalidade de vocês?
Eu honestamente não pensei que a demência dos ditadores Ortega e Rosario Murillo chegaria a tanto… É uma arbitrariedade jurídica. Mesmo assim, o fato é que eu não posso regressar ao meu país. O único documento enviado pelo governo para os Estados Unidos, o meu passaporte, não tem validade. Eu nunca pensei em sair do meu país dessa maneira. Não pude nem trazer uma mala. Agora estou aqui, em outro mundo, pensando em como reconstruir a minha vida. Os Estados Unidos são a terra das oportunidades, mas é uma sociedade muito focada no consumo. A mudança de clima e de cultura é drástica. 

Como assim?
A Nicarágua, até 2018, era uma sociedade muito unida. As pessoas construíam suas vidas em torno dos valores que realmente importam, como a família e os amigos. Havia força para seguir adiante. Também éramos um modelo de segurança pública. É verdade também que tudo isso se perdeu. Agora, a imensa maioria da população discorda do regime, enquanto uma parte da população foi enganada com ideias supostamente socialistas. Viramos um dos países mais violentos do mundo, sendo que é o governo quem mais perturba a segurança da população.

O sr. se sente um apátrida?
Eu não me sinto um apátrida. Não sou. Minha condição de nicaraguense é dada pela Constituição, que diz que tenho esse direito porque nasci no meu país. Eles não podem impedir que eu me sinta nicaraguense. Minha identidade vai continuar brotando dos meus poros, do meu ser, da minha essência. Logicamente, como nicaraguense que sou, voltarei à Nicarágua algum dia.

Arquivo pessoalArquivo pessoal“Meus registros acadêmicos foram apagados a mando do governo”
Argentina, Colômbia, México, Chile e Brasil se ofereceram para receber os nicaraguenses que tiveram a nacionalidade retirada. O sr. pensa em ir para um desses países?
Estou olhando as opções. Preciso pensar quais delas melhor se adaptam às minhas necessidades de trabalho e de estudo. Sobretudo, também analiso as possibilidades de reunificação familiar. A maioria dos ex-presos está focada em se encontrar com os parentes.

Essas ofertas de outros países são um sinal de que mesmo governantes de esquerda não aceitam as arbitrariedades de Daniel Ortega?
Totalmente. Os governos de esquerda da América Latina têm o dever e obrigação de tomar distância das ações dos tiranos. Não basta apenas se separar de Ortega e Rosario. É preciso também denunciá-los e pressioná-los.

Quais acusações foram levantadas contra o sr.?
Fui preso duas vezes. Na primeira, fiquei detido de 23 de setembro de 2018 até 1º de março de 2019. Fui acusado de terrorismo, assassinato, de fazer ameaças, roubo a mão armada, posse ilegal de armas de fogo e atentado contra a segurança pública. Eu me tornei um alvo depois de ter participado, com outros jovens, dos protestos contra o governo, em 2018. Também estava na liderança de forças opositoras, como a Unidade Nacional e a Coalizão Nacional. Fui perseguido por vários meses até que me capturaram. Durante a madrugada, policiais entraram na casa em que eu estava morando. Derrubaram os portões e entraram pelo teto. Eles me colocaram em numa viatura e fui sendo golpeado dentro do carro até a prisão.

E na segunda vez?
Essa durou de 23 de agosto de 2021 até o desterro, em 9 de fevereiro. Eu estava caminhando em um lugar central de Manágua e entrei em um posto de gasolina, procurando um lugar para trocar dinheiro. Ali havia vários veículos civis estacionados. Deles, saíram umas treze ou quinze pessoas armadas que apontaram seus rifles para mim. Então, chegou um comboio de umas dez viaturas, com policiais encapuzados. Eles bateram nas minhas costas e me jogaram no chão. Aí me botaram atrás de uma caminhonete, algemado. Um dos oficiais botou a perna nas minhas costas, para me imobilizar. Fui acusado de conspiração para afetar a soberania nacional. Logicamente, são acusações absurdas. Cheguei até a sentir vergonha alheia pelas pessoas que estavam participando desse processo nos tribunais.

O sr. chamou algum advogado para fazer a sua defesa?
Eu tive acesso a um advogado privado nas duas ocasiões. Mas ele só serviu para expor as arbitrariedades cometidas pelo governo. Meu advogado não pôde falar comigo ou ter acesso aos arquivos do caso, que não foram inseridos no sistema digital da Corte Suprema. Ele também não pôde submeter qualquer recurso. As informações que ele coletou para integrar a minha defesa não foram admitidas. A Corte se converteu em um circo. Mesmo antes de sermos acusados, todos nós já sabíamos que seríamos culpados. Os juízes só validavam as sentenças previamente escritas pelos dois ditadores (Ortega e Murillo).

Como essas coisas te afetaram?
Os maus-tratos físicos foram mais intensos na primeira detenção. Na segunda, não fui golpeado. A tortura, então, foi psicológica, com isolamentos por períodos prolongados. Cheguei a ficar três meses sem notícias da minha família. Tudo isso gerou crises de ansiedade, estresse, transtornos alimentares e de sono. Também experimentei situações obsessivo-compulsivas, porque a carga emocional é tremenda.

Antes de 2018, como o sr. imaginava o seu futuro?
Eu tinha desenhado, mais ou menos, como seria minha vida quando eu cumpriria 30 anos, em 2020. Nessa época eu trabalhava na área financeira de uma empresa. Queria me formar, terminar de construir minha casa, me casar e ter dois filhos. São coisas que qualquer pessoa sonha ter um dia. Cinco anos depois, minhas mãos estão vazias. Terei de recomeçar a vida do zero. Não tenho uma formação, porque meus registros acadêmicos foram apagados a mando do governo. Estou numa situação que nunca pensei estar. Mas estou em liberdade e tenho vontade de seguir adiante. Espero que todo o sacrifício que eu fiz contribua para que a Nicarágua entre em um processo de transição democrática em algum momento, para que o país se torne um lugar diferente e melhor para as próximas gerações. Espero que tudo que fizemos sirva para um bom propósito no futuro.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Qualquer ditadura, seja de esquerda ou de direita, é absurda! Como pode existir gente tão desumana! Ortega é um psicopata!

  2. Toda a solidariedade e esses nicaraguenses. É incrível como a comunidade internacional ainda aceita arbitrariedades desse gênero sem dar um pio.

  3. Tratado como bandido como em qualquer ditadura. Ortega é um psicotata corrupto e sanguinário igual a qualquer outro.

  4. Um certo país ao sul do equador também tem uma corte suprema que virou um circo referendando decisões de um condenado e cancelando passaportes de cidadãos que cometeram o crime de ter uma opinião divergente, a Nicarágua é logo ali…

  5. Ideias supostamente socialistas? O socialismo foi igual em todos os países onde foi implantado. Essas são as ideias socialistas nuas e cruas, não dá pra cair nessa cilada de que socialismo e comunismo querem o bem e pregam o amor. Comunismo e socialismo são a ideologia do invejoso e do recalcado que já perderam toda a empatia pelo próximo e todo o tipo de amarra moral.

    1. Lula é autoritário e apoia toda ditadura de esquerda!

  6. O Sr Papa Francisco, em declarações de hoje, chamou o governo da Nicarágua de ditadura grosseira. PERGUNTO: EXUSTE DITADURA EDUCADA, SR PAPA? A sua igreja é seus bispos são os maiores criminosos dos últimos 500 Anos neste plena. Nem o inferno quer vocês. PEDOFILIA, QUEIMACAO EM FOGUEIRA .....

  7. Duda Teixeira bota todos os colegas no bolso, pois é o único jornalista que sabe fazer excelentes reportagens. O resto se acha o centro do universo.

  8. Tudo pelo poder.. que direito as pessoas (políticos) tem sobre nós, nos dão migalhas em troca de votos para dizerem ao mundo, lá tem 30 milhões na linha da miséria.. mas o país é democrático. Somos massa de manobra, somente para deixá-los cada vez mais ricos e poderosos

  9. O ditador togado Alexandre de Moraes na prática também fez o mesmo com os jornalistas Paulo Figueiredo e Rodrigo Constantino lhes cancelando o passaporte brasileiro. Você isenção que aplaude

    1. Um erro não justifica outro. E aqui está se falando de Ortega, sua esposa e seu poder sobre uma maioria da população que está obrigada a seguir seus ditames.

Mais notícias
Assine agora
TOPO