Adriano Machado/Crusoé

O Evangelho segundo a liberdade de expressão

Togados nos advertem de que tudo à nossa volta é perigoso demais para permitirem que esfreguemos nos outros nosso desejo de expressão livre
10.03.23

O rabino Nilton Bonder costuma dizer em seus livros que o diabo é usado como um verdadeiro espantalho por muitos segmentos religiosos. De fato, a alma, naturalmente transgressora e desobediente, muitas vezes é domesticada pela figura simbólica do demônio, do inimigo, do mal.

O recado é: tenha medo e não vá, não faça, não saia do tom. Não agir nem sair do tom por medo é, decerto, o exercício mais estúpido possível de uma religiosidade, pois, se o medo nos coloca diante do risco, também nos coloca diante da liberdade.

Assim como seria possível vivermos nossa religiosidade íntima sem nos sentirmos ameaçados pelo medo, também seria viável vivermos nossa cidadania, caso não fôssemos tão idiotas. Mas somos. Queremos que alguém aplaque nossos temores, mesmo que isso custe estarmos sob completo controle do outro, da Igreja, do Estado.

O momento da liberdade de expressão no Brasil ilustra bem este contexto. A expressão é um direito fundamental presente na Constituição e serve para uma única coisa: ser exercido. Seu limite é seu eventual exercício abusivo. O limite da expressão, portanto, não está fora dela: está dentro, está nela mesma, é a ela intrínseco. Não vem do outro, não há inimigo ou demônio que a deva relativizar. Mesmo assim, temos assistido à expressão ser retalhada por diversos espantalhos que, ao fim e ao cabo, representam o grande medo de nossa democracia: sua própria finitude.

Os juízes de direito, nossos sacerdotes modernos, evangelizam nos púlpitos e microfones da imprensa, sob aplauso dos demais Poderes da República e apoio de parte da sociedade civil, muito engajada em ganhar dinheiro com nosso medo, que fake news, desinformação, discurso de ódio, falas antidemocráticas (que não significam concretamente nada e, por isso mesmo, são capazes de significar quase tudo) trazem conflito e confusão a nossos corações puros, colocando em risco a compreensão coletiva de que somos destinados a agir democraticamente.

A catequese jurisprudencial, que tem seu Vaticano instalado nos corredores misteriosos do Supremo Tribunal Federal, prega que a expressão é um valor legítimo em nossa democracia, desde que não desperte o mal, o inimigo, os demônios, espantalhos e bichos-papões. Os togados nos advertem de que tudo à nossa volta é perigosíssimo demais para permitirem que esfreguemos de forma transgressora nos outros nosso desejo de expressão livre. Chegam até mesmo a escrever em caixa alta: liberdade de expressão não é liberdade de agressão, menino levado! Ou então: liberdade não se confunde com libertinagem, traquinas!

O mundo mudou; a liberdade de expressão, talvez, tenha morrido e não vimos. Estamos, na verdade, agora construindo uma expressão moral, domesticada, moldada pelo pior tipo de perspectiva religiosa — a que nos controla pelo medo. Segundo tal Evangelho, as cortes nos pregam que não basta cuidarmos apenas de não abusarmos da nossa liberdade; precisamos, sobretudo, espantar os demônios dos riscos que a cercam, sob ameaça de pecarmos de forma capital e perdermos nossa democracia.

É o que nos dizem. É o que nos sobrou. Diante do nosso medo, que nos legitima como idiotas e outorga a quem possui força e esperteza o controle de nosso discurso, restará a cada dia um pouco menos para se dizer: amém!

 

André Marsiglia é advogado, professor e articulista. Escreve sobre direito e política

andremarsiglia.com.br

@marsiglia_andre

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  1. Excelente matéria, parabéns! Textos como esse nos fazem vistlumbrar o sutil domínio do poder jurisdicional, sobretudo do STF, sobre a nossa tão sofrida conquista da democracia.

  2. Somos vítimas do próprio veneno, as redes sociais. Um bumerangue que destrói os verdadeiros valores humanos. A droga do século. Não sei até quando, saberemos utilizar com racionalidade, sabendo descartar o que não presta. sem precisar da força do estado.

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