Foto: Fundação Casa de Rui BarbosaClarice Lispector: será que ela serve mesmo para o mundo woke?

É preciso consertar a obra de Clarice Lispector

Ela não é uma escritora reconfortante para quem se ocupa das questões políticas (e não literárias) da discriminação e do preconceito. Como garantir que não será cancelada amanhã ou depois?
10.03.23

É realmente um escândalo que passagens preocupantes da obra ficcional de Clarice Lispector (1920-1977) ainda não tenham sido expurgadas. Estive dando uma olhada em seus contos e há uma grande quantidade de trechos que põem em destaque características físicas dos personagens. É impossível ficar indiferente diante dos riscos que isso traz a leitoras e leitores: as passagens podem mexer com inseguranças ou lembrar experiências dolorosas, disparando gatilhos de pânico e infelicidade.

Dou alguns exemplos.

O conto Tentação, do livro A Legião Estrangeira, precisa ser eliminado inteiramente de futuras edições. Diz respeito a uma menina ruiva. A narradora a observa no cúmulo da infelicidade: ruiva, sentada numa escada sob o sol a pino e ainda por cima com soluço. Aparece um cão basset e a menina imediatamente se identifica com ele: “Os pelos de ambos eram curtos, vermelhos.” A narradora sente que a menina deseja ter o cachorro desesperadamente (e o cachorro, parece, também deseja ser dela!). Mas o instante passa e o basset vai embora com sua dona. O conto ressalta a solidão e o isolamento de crianças que têm um traço incomum, como os cabelos ruivos, sem oferecer nenhum consolo (exceto a menção a um futuro – incerto – em que a menina poderia erguer altivamente sua cabeça de mulher). Não é possível fazer uma intervenção discreta nesse texto. Ele se resolve em duas páginas. Não tem salvação.

No mesmo livro há o conto Os Desastres de Sofia. Ele tem dois personagens, uma menina e seu professor. Esse é descrito logo no começo: “gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos”. Mais tarde ficamos sabendo que ele é feio quando sorri. Instintivamente, a menina associa as características físicas – especialmente os ombros contraídos – a alguma fraqueza moral. E por isso o homem a irrita, ao mesmo tempo que ela quer salvá-lo. Será que essa ênfase toda na gordura, nos ombros e no sorriso feio é necessária? Esse é um conto mais longo e complexo. Sem dúvida seria possível melhorá-lo cortando esses detalhes que estigmatizam um certo tipo de corpo.

Não vou comentar longamente o conto O Corpo, de um dos últimos livros de Lispector, mas observo que a gordura de uma personagem é novamente posta em evidência. Trata-se de um trisal: um homem e duas mulheres que vivem juntos. Carmem, a mulher mais velha, é “gorda e enxundiosa”. O uso de uma palavra tão incomum quanto “enxundiosa”, que indica ao mesmo tempo obsesidade e oleosidade, põe o corpo de Carmem ainda mais em destaque, sob uma luz desagradável. Precisava mesmo? De jeito nenhum. No final da história, Carmem e Beatriz se unem para dar cabo do homem que as oprimia. Num conto com um final tão satisfatório, a descrição física das mulheres, mais do que secundária, é desnecessária. Faz todo sentido cortá-la.

Há muitos outros exemplos que poderiam ser citados, mas esses já são suficientes. É preciso submeter a obra de Clarice Lispector a uma limpeza, para que ela possa cumprir sua função verdadeira: tornar seus leitores e leitoras pessoas melhores, aptas a ver o mundo não como ele é, mas como precisa ser.

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Será que tenho de explicar que o texto acima é 100% irônico?

Não, eu não quero livrar a obra de Clarice Lispector de passagens “incômodas”.

Quero sugerir que interpretações estúpidas e censórias podem recair sobre qualquer texto, inclusive sobre aqueles considerados sagrados pelos leitores “virtuosos” de hoje – leitores que não se contentam mais em discutir o contexto em que as obras do passado foram escritas, preferindo purgá-las dos seus supostos pecados ou, simplesmente, bani-las.

Escolhi Clarice por dois motivos: primeiro, porque ela é adorada pela crítica feminista e queer; em segundo lugar, porque ela seria uma escritora muito pior  se não prestasse tanta atenção ao corpo de seus personagens.

Clarice, no entanto, não escreve para tranquilizar as pessoas sobre suas rugas ou sua gordura. Nem para dizer que todos os corpos são belos ou coisa que o valha. Não é, em absoluto, uma escritora reconfortante para quem se ocupa das questões políticas (e não literárias) da discriminação e do preconceito. As  recompensas de sua obra são outras.

Nos contos e romances de Clarice Lispector, o corpo com frequência é um problema, um enigma, o ponto de partida para as mais perturbadoras vertigens  existenciais (assim como a célebre gosma da barata que a protagonista de A Paixão Segundo G.H. engole).

Entro nesse assunto da censura e eventual cancelamento de escritores (com algum atraso) por causa da história de Roald Dahl (1916-1990), autor inglês de literatura infantil cujos livros estão sendo relançados sem palavras como “gordo” e “feio”, que ele usava despreocupadamente para descrever seus personagens. E agora também estão reescrevendo os livros do 007, pela mesma razão. Parece que Ian Fleming, o criador do superespião, era preconceituoso quando falava de minorias.

Nunca li Ian Fleming, mas imagino como vão “consertar” um livro como Os Pestes (Editora 34), que li com meus filhos alguns anos atrás. O Sr. Peste é “um velho horroroso e fedorento”. A Sra. Peste, idem. A diferença é que ela não tem a cara peluda. “O que era uma pena”, escreve Dahl, “porque se tivesse, os pelos esconderiam um pouco a feiura dela.” Como costumava acontecer nos livros infantis desde a época dos irmãos Grimm, no século 18, a feiura do Sr. e da Sra. Peste vem de mãos dadas com a malvadeza. Traços físicos e morais se confundem.

A medida dos editores de Roald Dahl é preventiva. Eles se antecipam a uma campanha de cancelamento que poderia estourar a qualquer momento. Com isso, fazem um escritor bastante endiabrado do século 20 soar como um autor bonzinho dos dias de hoje. As crianças que o lerem serão levadas a crer que o mundo sempre foi igual. Não podem saber que no passado as coisas eram diferentes – e talvez, em alguns aspectos, tenham até melhorado.

Desde os anos 1970 há quem aponte o racismo ou o sexismo de Roald Dahl. Nada semelhante jamais aconteceu com Clarice Lispector. Mas nunca se sabe. Cheias de fúria justiceira, as revoluções têm o hábito de se voltar contra seus próprios ídolos. E quem vai garantir que amanhã ou depois, em alguma sala de aula repleta de indignação em nome das minorias, um conto como Tentação não vá ser mesmo considerado insensível para com os ruivos deste mundo? Como garantir que Clarice jamais será excomungada em nome da delicadeza?

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  1. As empresas (aí incluindo as editoras) estão muito acovardadas. Essas campanhas de cancelamento são gritarias que logo passam. Que poder há de ter uma militância histérica dessas pra quebrá-las?

  2. Um conhecido (e histérico) “influencer”, seja-lá-o-que-diabos-seja-isso, queria cancelar Moby Dick por “ficar realmente incomodado” com o “racismo” de Herman Melville: onde já se viu um cachalote BRANCO? Como não ficaria bem para os politicamente corretos queimar livros em praça pública tal qual os n@zist@s, eles inventam patacoadas do gênero para (tentar) reescrever clássicos da literatura. Há de chegar a vez da Bíblia…

  3. Excelente texto, mas não deixa de ser triste que o óbvio tenha de ser dito constantemente. Contudo não podemos cansar de o dizer, sob pena de deixar a loucura e a censura se instalarem para não mais saírem

  4. O militante petista graieb, que conseguiu espantar até o dantas, quer destruir a obra de uma escritora brasileira clássica. O conhecimento que ele acha que possui não chega aos pés da Clarice. Uma petulância de quem se acha o centro do universo.

  5. Estamos vivendo não na era do Iluminismo, mas do ilusionismo. Só podemos ser bons ou maus, nunca ambos. Hahahahaha. O ser humano é capaz de tudo, inclusive de se iludir com o falso moralismo em voga.

  6. Não sei em que mundo essas pessoas vivem. Um mundo fofo, talvez, onde as maiores barbaridades são livros antigos citando aspectos físicos. Então se empenham arduamente com seus iphones contra esses crimes terríveis. Um mundo sem traficantes que julgam os moradores de suas comunidades, aplicando até pena de morte em crianças, sem direito a contraditório, sem esperar a pena transitar em julgado…

  7. Conforme o grau de interesse se reescreve a história e em outros casos querem apagar a história. Ainda por cima chamam de evolução. Tragicamente ridículo.

  8. É típico desse pessoal apagar tudo que veio antes deles ( tudo de bom, evidentemente ). A história deixa de existir. Lembrem-se que já aconteceu com Monteiro Lobato. “Assim caminha a humanidade”, infelizmente.

    1. A vida imita a arte. No livro 1984, de George Orwell, o personagem principal trabalha modificando livros e notícias do passado para se adequarem ao presente. O passado não era imutável. É assustador o rumo que o mundo está tomando.

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