Foto: Adriano Machado/O AntagonistaGraças à rejeição de Jair Bolsonaro, Lula venceu a eleição presidencial sem refletir publicamente sobre os seus erros

Como analisar o governo Lula: passo 3

Lutar contra a falta de confiança é o primeiro dever de casa do governo, e isso pode exigir do PT mostrar que aprendeu alguma coisa com o passado
10.03.23

Maquiavel ensinou que qualquer pessoa controla apenas uma parte da sua vida. A outra é ditada pela sorte, que ele chamava de Fortuna. O governante habilidoso é aquele que tem boa capacidade (virtù) de lidar com aquilo que o destino lhe oferece. Pintando a política dessa maneira, o pensador florentino a caracteriza como uma atividade reativa, fora de qualquer ilusão na qual líderes forjam o destino de suas nações. O que há, na realidade, é gente com perspicácia para aproveitar as oportunidades de ação que a conjuntura fornece e outros que não conseguem ver os limites à sua frente e sofrem por isso.

A busca das oportunidades e dos limites é o que faz a análise de conjuntura. No caso de avaliar o governo Lula, trata-se de saber o quanto eventos domésticos e internacionais são compatíveis ou não com os objetivos políticos do governo e o que recomendam em termos de ação política. A partir daí,é possível formar um juízo aplicado do que está por vir e das perspectivas para a economia e para a democracia brasileira, nosso objetivo de sempre.

Internacionalmente, a narrativa política é favorável ao petista. Pelo menos cinco grandes movimentos legitimam um modelo de Estado mais intervencionista e expansionista, ao estilo do que Lula prefere: (i) o rescaldo da pandemia ainda exige políticas de alívio para empresas e pessoas; (ii) a transição energética necessita de recursos para o desenvolvimento de novas matrizes e para a manutenção das antigas enquanto ainda forem necessárias; (iii) a transição digital sugere programas de requalificação de pessoas; (iv) o acirramento de tensões geopolíticas faz com que países busquem internalizar cadeias produtivas consideradas estratégicas; e (v) mudanças demográficas, principalmente o envelhecimento da população, pressionam os sistemas de pensão e de saúde. Combinados, esses fatores sugerem um clima de tolerância maior com gastos públicos e de investimento estatal em atividades econômicas consideradas “estratégicas”, além do discurso nacionalista.

Já dentro de casa, Lula vive uma situação inesperada para o PT, mas previsível para observadores neutros, que é a falta de confiança nas fórmulas políticas e econômicas aplicadas pelo governo. A repetição de discursos e medidas que deram resultados ruins no passado mostra que o partido não fez o dever de casa de refletir sobre sua trajetória, acredita na narrativa de que Dilma Rousseff só não acertou porque sofreu um “golpe parlamentar” e enxerga a eleição de Lula como um “direito ao esquecimento” e um salvo-conduto para comandar a economia com liberdade.

Essa convicção torna o PT míope para duas situações críticas. A primeira é não reconhecer importantes mudanças institucionais de governança — muitas criadas até para resolver problemas de suas gestões passadas — e condená-las sem qualquer juízo crítico. Isso cria uma agenda negativa para o governo, de retirar credibilidade das regras vigentes sem, no entanto, apresentar ideias de reposição ou, se elas surgirem, capacidade política de aprová-las em um Congresso Nacional, que na sua maioria foi o real autor daquilo que Lula critica, como a autonomia do Banco Central. O resultado é paralisia entre agentes privados, que reduzem seus movimentos ao mínimo necessário enquanto as regras do jogo não estão claras.

A segunda é perceber que esta nova passagem pelo Planalto parte de um déficit de confiança porque medidas e discurso requentados não revivam a memória do período de crescimento, como Lula forçou no seu discurso eleitoral, mas lembram exageradamente os momentos de decadência. E, sem confiança, a economia não anda.

Uma história ilustra bem essa situação. O anúncio da intenção do Planalto de fazer gastos públicos em infraestrutura para reativar a economia e gerar empregos provocou uma reação curiosa entre empresários do setor. Reunidos, eles se dizem uns aos outros que, se o governo quiser dar uma festa, eles irão participar, mas sabendo que a ressaca está contratada. Em outras palavras, os donos de empresas não vão investir um centavo além do que considerarem necessário para atender a uma demanda que eles consideram apenas circunstancial. A falta de confiança os impedirá de investir em novos equipamentos ou contratar pessoas esperando que o ciclo de crescimento seja sustentável e de longo prazo. Dessa forma, um novo ciclo de crescimento hoje, se acontecer, já nascerá fragilizado e encurtado.

Lutar contra a falta de confiança é o primeiro dever de casa do governo, e isso pode exigir do PT mostrar que aprendeu algo com o passado e que reconhece que avanços foram feitos e precisam ser mantidos. O problema é que a rejeição do ex-presidente Jair Bolsonaro era tão grande que facultou a Lula vencer a eleição sem refletir publicamente sobre seus erros junto aos eleitores. Fará isso justamente agora, que está no poder?

Esse é um teste de sofisticação que a conjuntura impõe. A falta de confiança dos agentes econômicos — e não apenas do mercado financeiro, como pesquisas da FGV e da CNI mostram em profusão — é um fato dado, assim como o oceano Atlântico banha as costas brasileiras. Para agir estrategicamente, o Planalto precisa entender bem a origem desse sentimento, mergulhar na busca de soluções sem preconceitos e unificar o discurso dentro de casa para transmiti-lo às pessoas, empresas e partidos políticos.

Para a economia, não há no horizonte um movimento de impulso porque o leão prevalece diante de obstáculos que seriam superados se fossem contornados, e não confrontados. Para a democracia, a ideia de enfrentamento tende a incentivar uma postura populista, com ataques às regras que conferiram ao país o pouco de tranquilidade e estabilidade que conseguiu viver nos últimos anos.

Por fim, é possível que Maquiavel encerraria uma conversa com Lula, se esse lhe concedesse uma audiência, explicando a complementariedade do leão e da raposa. O rei da selva não sabe escapar das armadilhas, e a raposa não consegue se defender dos lobos. Sintetizando a natureza de ambos, é preciso saber que há um momento para cada coisa, a depender da circunstância, e não da vontade do príncipe. Lula precisou ser um leão para encarar a cadeia e vencer a eleição? Perfeito. Mas ao tratar com a sociedade, que vem de uma década perdida em termos de geração de riqueza e que identifica no PT o início do seu ciclo de baixa, é preciso agir mais como raposa, evitando arapucas, especialmente aquelas que são criadas por ele mesmo.

 

Leonardo Barreto é cientista político

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  1. Mesmo Bolsonaro corrupto , seu roubo foi milesimal se comparado à voracidade dos petistas.E a derrota dele será muito mais prejudicial , porque a Luladrão será possível dar o golpe da perpetuação da quadrilha do pt. O Armínio Fraga não é burro, mas acreditar que o Boi seria pior dá até raiva do banqueiro milionário

    1. Entre diversos candidatos a Presidente da República a maioria dos eleitores optaram por dois por dois com características semelhantes, populistas, despreparados, demagogos

  2. Tenho 2 pontos: 1) Não vejo uma rejeição tão grande ao Bolsonaro. Ele teve poucoa votos a menos. Então a rejeição a ambos é de 50% da população para cada; 2) Bolsonaro é tão limitado intelectualmente quanto Luladrão e Dilma que só pensaram em roubar e proteger suas famílias. E assim vimos que a imprensa e o estamento burocrático se juntaram para derrotar Bolsonaro, um saudosista da ditadura militar, que de tão tacanho acreditou em golpe. Menosprezou a esquerda e se achou com o"EU AUTORIZO!"

  3. A internet levou ao povo informação e conhecimento e assim os ladrões e criminosos são mostrados como são e não serão narrativas que ainda manipulam idiotas e ignorantes que vão segurar desgovernos.

  4. Verdadeiramente é necessário que o PT, em matéria económica, faça tudo em oposto ao que sempre acreditou. Para um partido que nunca fez qualquer mea culpa e sempre exteriorizou responsabilidades de seus fracassos a chance disso ocorrer é 0

  5. Parabéns de novo, ótima reflexão. Só resta à consultoria (sábia) do congresso fazer algo nestes próximos 4 anos. E torcer para que um ser com inteligência política e social (o que é difícil) seja eleito, pra levar este País à modernidade com consciência.

  6. Não tenho tanta certeza que a narrativa política de Lula esteja com a mesma força nas outras nações. Aliás, ele já deu mau sinal perante as Nações Unidas mostrando-se favorável às ditaduras. Torço para que Lulapai seja afastado do poder como foi Dilma. Tudo dentro da Lei!

  7. Lula é tão vaidoso que não faz autocrítica e nem deixa seus colegas de partido fazerem. Lula parou nos anos 70-80. Pra ele o século XXI ainda não chegou e as novas tecnologias são coisa de almanaque! O discurso jurássico do seu Ministro do Trabalho diz tudo!

  8. Algumas pessoas se tornam mais sábias ao envelhecer. Não parece ser o caso. Nos cabe rezar para que Alckmin seja o adulto na sala.

    1. Para o bem do País e dos brasileiros Alckmin deve assumir o quanto antes

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