Flickr/PolycartSupermercados agora têm nova modalidade de mendicância

Não há como escapar do Brasil

À esquerda e à direita, já se decretou a morte do país – que no entanto segue firme e teimoso em toda sua miséria
10.03.23

Em um supermercado instalado dentro de um shopping de São Paulo, um senhor de bermudas que estava à minha frente na fila da caixa virou-se e disse:

— Nosso país acabou.

Uma mulher acabara de nos abordar, pedindo que comprássemos um pacote de arroz para sua família. Havia pelo menos meia dúzia de pedintes empurrando carrinhos com os produtos de que necessitavam, em busca de consumidores compassivos que pagassem por esses itens.

Nosso país acabou, disse o senhor de bermuda à minha frente na fila, e eu concordei com um discreto movimento da cabeça, em silêncio, me esforçando para manter uma expressão indiferente e indevassável. Não era uma atitude receptiva, a minha. Talvez fosse até francamente antipática. O senhor de bermuda voltou a acomodar suas compras na esteira do caixa. Não me dirigiu mais a palavra.

Eu de ordinário não gosto de conversar com estranhos (já confessei isso em uma coluna anterior, com apoio de um aforismo de Karl Kraus, genial misantropo austríaco: “Muitos têm o desejo de me matar. Muitos, o desejo de ter dois dedos de prosa comigo. Daqueles a lei me protege”). Mas não foi só por causa de minhas tendências antissociais que não dei conversa ao senhor de bermuda. Algo na indignação fervorosa de sua voz me levou a intuir, justa ou injustamente, que no “nosso país” só têm cidadania aqueles que fazem compras. Mulheres que pedem um saco de arroz são estrangeiras.

Desconfio até que o senhor de bermudas saberia dizer a data precisa em que nosso país acabou: 1º de janeiro. Meu silêncio reticente talvez o tenha feito suspeitar que estou entre os que tomam o primeiro dia do ano como a data de recomeço do Brasil. Pouco me importa. Que pense mal de mim, mas não fale comigo: assim se preserva a civilidade. O que o senhor de bermuda disse, porém, ficou ressoando em mim. Ou, antes, foi a circunstância que motivou sua curta diatribe que me intrigou – e que instigou este texto.

O sentimento de que nosso país fracassou não é em absoluto incomum. Tal desalento assola, em diferentes circunstâncias, os partidários dos dois campos ideológicos que dividem o eleitorado. O Brasil acabou quando Bolsonaro foi eleito. Também acabou quando Bolsonaro perdeu a reeleição – só não para o mesmo contingente de brasileiros. Isso é trivial. O curioso é que uma pessoa possa tomar a mendicância como marco definitivo da decadência nacional.

Em 54 anos de uma vida de classe média, não guardo lembrança de um tempo em que não tenha encontrado pessoas pedindo esmola nas ruas. Na minha infância, no Rio Grande do Sul, eram moleques irreverentes na porta dos mercados e velhos molambentos na entrada das igrejas. No Segundo Grau (atual Ensino Médio), quando eu morava em Estância Velha e estudava em Novo Hamburgo – ambas cidades na região gaúcha do Vale do Rio dos Sinos – e ainda visitava colegas em cidades como São Leopoldo e São Sebastião do Caí, os pedintes marcavam presença em toda rodoviária por onde eu passava. Anos depois, lembro vivamente de um homem que veio me pedir uns trocados nos arredores da faculdade onde cursei jornalismo, já em Porto Alegre: “Vou ser sincero: não é pra comprar pão, não. É para comprar cachaça”. Obviamente, eu lhe dei dinheiro.

No ano passado, em sua campanha para se eleger mais uma vez presidente do Brasil em 2003, Lula vangloriou-se de um tempo em que não se via no país crianças pedindo esmola. Pois eu não recordo de um tempo em que se transitasse por São Paulo sem encontrar meninos e meninas pedindo dinheiro no semáforo (ou “farol”, como dizem os locais). Claro que isso varia conforme as circunstâncias econômicas. O crescimento do número de pedintes e de moradores de rua é quase um papel tornassol da crise. No bairro em que vivo, região central de São Paulo, o crescimento dessa população desassistida foi nítido nos anos recessivos de Dilma Rousseff – e voltou a se verificar nos anos recentes.

Alguém vê alguém pedindo pão no caixa da padaria? Você não vê, pô”, declarou Jair Bolsonaro em entrevista de campanha à Jovem Pan, em agosto do ano passado. Para ser justo, devo dizer que de fato não costumo ver isso. Na minha vizinhança, o que venho encontrando sempre – sempre, literalmente: toda vez que ponho o pé fora de casa – são pobres na frente dos supermercados. Não pedem pão nem bolo, mas arroz, óleo de cozinha, macarrão.

O supermercado em que ouvi decretarem o fim do Brasil não é dos que frequento. Fazia talvez mais de ano que não pisava lá, e foi novidade encontrar um assédio tão intenso no espaço entre as prateleiras de mercadorias e as caixas. Eu só conhecia o morador de rua que se apresenta assegurando que não está pedindo dinheiro, para então dizer que precisa de tal ou qual produto alimentício, e que depois espera na calçada do lado de fora do mercado até que a compra seja feita. Não sei se o senhor de bermudas ficou chocado com a nova modalidade de mendicância que não guarda o recato de esperar do lado de fora. Talvez, ao contrário, seu desabafo de três palavras expressasse o cansaço de encontrar sempre o mesmo cenário de miséria dentro do shopping, lugar tradicional e ilusoriamente associado a conforto, privacidade, segurança.

O senhor de bermuda reagiu à mulher que pede um pacote de arroz dentro do shopping como um romano do século 5 reagiria ao visigodo que cavalga por sua rua. Só que não pode haver invasão bárbara onde vigora a barbárie. Se eu houvesse optado por dizer algo ao senhor de bermuda, teria dito o seguinte: “Não, nosso país não acabou. O senhor apenas descobriu que no Brasil não existe lugar para escapar ao Brasil”.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. ÓTIMO ARTIGO GOSTEI...mas tenho 50 anos e na minha época de criança aqui no interior de São Paulo era bem menor a quantidade de pedintes e moradores de rua, aumentou absurdamente sim

  2. Parabéns. Muito realista. A frase de um grande crápula da política, autor dos "Marimbondos de Fogo" disse que "o Brasil é maior que seus problemas". É verdade. Pena que virou bandalheira que vem desde o descobrimento.

  3. No país das atribulações o que o pagador de impostos quer é apenas pagar sossegadamente seus impostos sobre o consumo sem ser interpelado por um pedinte qualquer. Sossego é o mínimo (e o máximo) que se pode desejar no brazil. Mas no país da farsa a verdade é penetra, logo, não posso admitir que sinto-me incomodado quando desconhecidos me abordam em supermercados, bares, restaurantes, etc me pedindo algo, como um pote de dois litros de sorvete (aconteceu de fato!). “Dai sorvete a quem tem… fome?”

    1. Fui abordada uma vez por um que me pediu sanduíche e uma bolachinha doce. Comprei e dei, inclusive a bolachinha (Maizena, no caso). Bolacha doce é tão bom…

  4. Excelente balanço e relatório dessa realidade cruel e em progressiva degeneração, que nos amedronta e é inevitável. Infelizmente, um muro divisório construído por tantas mãos irresponsáveis e suas cabeças vazias…

  5. Pedintes em porta de mercado e igreja sempre houve, desde que o Brasil é Brasil e eu me entendo por gente. Aos 7 anos de idade fui abraçada por um mendigo em plena rua e bem me lembro do cheiro de cachaça misturado à falta de banho do sujeito, além, claro, do enorme susto que tomei! Mas o que me assusta mais hoje é o enorme contingente de moradores de rua, sempre agarrados aos seus cachorros, condição sine qua non para não serem abordados pela Ordem Pública do Sr Prefeito. Homem e cão sem teto.

  6. Não sei se o país acabou ou não. Sei que o que está a fenecer, no entanto, é a esperança de que nos tornemos, um dia, parte de um grande país. Talvez tenha sido isso que o senhor de bermudas tenha querido dizer, e que o articulista não tenha querido entender.

  7. Minha grande desilusão se estende a meu netinho de cinco anos e minha neta de 13.Quando forem adultos certamente assistirão os telejornais falar em reforma da previdência e tributária. De eleições entre direita radical e esquerda populista( ou direita populista e esquerda radical?). Fico triste e desolado por eles. Não tenho mais esperança alguma- se é que algum dia já tive. O país acabou e meus netos ficarão apátridas desta Nicarágua nossa de cada dia." Desunião e Desconstrução. Pátria Amada.

    1. Não sei se o país acabou ou não. Sei que o que está a fenecer, no entanto, é a esperança de que cheguemos um dia a ser parte de um grande país. Talvez seja isto o que o senhor de bermudas tenha querido dizer, e que o articulista não tenha querido entender.

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