Foto: ReproduçãoJoias sauditas: é de interesse comum exigir que os políticos administrem os bens públicos com o mínimo de honestidade

Nada a declarar

É desalentador para todos nós, que acreditávamos que o país estava mudando, assistir ao retorno triunfante do velho patrimonialismo
10.03.23

A comédia arábica que começou a se desenrolar em 2020 e culminou no “nada a declarar” dos nossos destemidos emissários do governo Bolsonaro em terras árabes, demonstra que seguimos em marcha, mas em sentido contrário. Ainda temos muitos agentes públicos que trocam favores por barras de ouro e gastam recursos públicos asfaltando as estradas da própria fazenda. Agora, descobrimos uma categoria que estava oculta: a dos que praticam contrabando internacional de joias.

Já estamos até acostumados com a relação promíscua de políticos com empresários, naquelas negociações nada institucionais com o governo, pautadas por atalhos na burocracia, vantagens indevidas, tratamentos privilegiados e uma longa lista de facilidades para driblar os trâmites e as regras estabelecidas.

Na verdade, a institucionalidade brasileira costuma tratar as instituições como propriedades privadas. Mas o curioso é que, quando apanhados em maracutaias, os políticos nunca têm o que declarar. Preferem acusar a imprensa e as grandes corporações internacionais. Às vezes são mais atrevidos ao tentarem nos enganar, colocando a culpa na falta de moralidade de um abstrato “sistema político”, diluindo, assim, suas escolhas pessoais pelos “malfeitos”. O mais incrível é que, nesses casos, sempre aparece uma legitimação filosófica preventiva, como naquele axioma memorável de um de nossos mais ilustres juristas: “o crime já aconteceu, de que adianta punir?

Nada a declarar. Porque é, de fato, um desalento a todos nós que acreditamos que o país estava mudando, depois que políticos e empreiteiros corruptos foram parar na prisão, assistir ao retorno triunfante do nosso velho patrimonialismo. Alguns julgamentos para anular julgamentos e todos os condenados foram sendo restituídos à vida pública, fazendo com que a Ética e a moralidade voltassem a ser coisas obsoletas.

Para muitos dos nossos intelectuais, ainda somos vítimas do processo de colonização que nos legou os maus costumes ibéricos. Mas a corrupção já era um tema recorrente em Platão. Na República, ele chega a dizer que as democracias podem sofrer com a corrupção generalizada, a ponto de ela se tornar não apenas visível, mas tolerada e até mesmo celebrada. Atualmente, enquanto alguns celebram, somos obrigados a tolerar uma série de governos corruptos.

A questão, portanto, não é exclusivamente brasileira. A democracia esteve em crise desde a sua invenção. Mas todas as vezes que ela se torna disfuncional, o povo acaba apelando a soluções populistas, ignorando que o ideal democrático não é um estilo de vida nem uma categoria moral. E esse ideal não é conquistado apenas com cartas públicas em defesa do Estado Democrático de Direito e eleições em dois em dois anos, mas aprimorada, diariamente, com o nosso compromisso de se buscar a justiça e o bem comum.

E parte desse compromisso é declarar nosso repúdio às tentativas desastradas do ex-presidente Bolsonaro de se apossar das joias árabes que foram apreendidas pela Receita Federal em Guarulhos — em uma ação parecida com a de Lula no passado, enchendo contêineres com presentes recebidos quando chefe de Estado para enviá-los ao seu instituto, em São Paulo. Independente de coloração ideológica, todos devemos condenar essas formas nada republicanas de misturar o público com o privado. Afinal, é de interesse comum, a bolsonaristas, petistas e antipetistas, defender os valores republicanos e exigir que os políticos administrem os bens públicos com o mínimo de honestidade.

Precisamos, portanto, estabelecer um diálogo com base em valores e fundamentos comuns, caso contrário, já dizia Sócrates, também na República de Platão, “uma vez desatada a luta pelo poder, ela trará consigo a ruína dos governantes e também da nação”. Os gregos sempre souberam das coisas. O que diferencia o homem dos animais é a capacidade de possuir e “ouvir” a razão, por isso, na Ética à Nicômaco, Aristóteles fez questão de enfatizar que deveríamos conviver com os amigos para comunicar palavras e pensamentos, e não pastar na mesma pradaria como os gados.

Embora não tenhamos muito a declarar por termos regredido tanto no que tange à corrupção, não podemos nos deixar vencer pelo pessimismo nem nos convencermos de que tudo está perdido. Afinal, pior do que uma alma perversa, dizia Charles Péguy, é uma alma conformada.

 

Diogo Chiuso é escritor e autor do livro O que restou da política, publicado pela editora Noétika em 2022

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  1. O atual estado de coisas apenas mudará sob pressão constante da população. Mas foi só tirarmos o pé do pescoço do poder e tudo foi desfeito, tendo consequência a certeza da impunidade que é desalentador e desestimulante. Esta é a principal missão de uma nova geração de políticos que se apresenta: voltar a motivar o povo para a luta que deve ser feita constantemente, caso contrário os reveses serão certos.

  2. ....isso aí me lembra a época do mensalão em que a senhora de um deputado federal de partido protetor dos trabalhadores em Osasco se perdeu dentro de um shopping, entrou em um banco e saiu com r$50.000,00 na mão, pode isso!? um colega do interior comentou: já imaginou se chegando em casa minha mulher comenta: -Benzinho, veja o que eu achei na rua! -O que é isso? -É a chave de um Mercedez Benz!!!!!!!!!!!!. Cara do céu, o que é isso? Esse mundo está ou não perdido?

  3. Mas é muito triste ver corruptos voltando à ativa . Teremos que indenizar Sérgio Cabral por acusá-lo "injustamente". Isso é coisa do Brasil. Triste demais.

  4. da Crusoé por Marios e Diogos, estamos reencontrando o prazer de ler artigos brilhantes sobre política e costumes da lavra de talentosos escritores, competentes, envolventes e ótimos! Desde já agradeço e autorizo a renovação da assinatura em junho!

    1. Todos nós que lamentamos o abandono da nossa Crusoé…

  5. Queria ter esperança, de verdade, mas ela já se foi faz tempo. O Brasil não tem salvação. Aqui, é cada um por si e deus contra todos. Se eu pudesse, saía daqui, sem olhar pra trás e ainda tiraria a poeira dos meus calçados, mas não posso. Podem dizer que sou antipatriota, pq certamente, patriota não sou. É triste, mas é verdade. Aos que conseguiram sair do Bananão, não voltem, só digo isso.

  6. É inacreditável a capacidade destes políticos de nos surpreender a cada ano! O brasileiro certinho, pagador correto de impostos, que declara o que carrega, que recolhe seu lixo do espaço público, que para no sinal ( ou semáforo), que ensina os filhos e netos valores de civilidade… esse brasileiro à respeito de quem vos falo, é a minoria???

  7. Não devemos nos conformar mas temos que nos conscientizar que a elevação do padrão moral é trabalho para gerações pois o estrago é muito grande.

  8. Muito bom seu texto, Chiuso. Inclusive lembrando que esta prática não é novidade ao lembrar que Lulapai também já se apossou de muitos "valores republicanos".

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