Herbert von KarajanKarajan regendo: o mundo real não se encaixa no fetiche - Foto: Reprodução/Youtube

Três tipos humanos

Audiófilo, cinéfilo e colecionador de 'Playboys': o que eles têm em comum?
14.09.23

O leitor já deve ter deparado, em algum momento de sua vida, com algum desses tipos humanos descritos a seguir, ou todos eles.

O primeiro é o audiófilo. O sujeito que tem coleção de CDs e vinis, é obcecado por música clássica reproduzida eletronicamente, tem caixas de som que custam muito mais caro do que as convencionais. Apesar de gostar de música clássica, o audiófilo não frequenta concertos – ele faz cara feia para música tocada ao vivo, acha tudo ruim. Pode ser a Filarmônica de Berlim: ele vai reclamar da afinação, da interpretação do solista, por exemplo.

O audiófilo tem também outra característica: ele acredita que a grande música acabou em algum momento do passado – seja depois de Brahms, de Mahler, ou do impressionismo musical francês.

Postura semelhante é do cinéfilo (na verdade, de um tipo específico de cinéfilo): ele despreza todos – ou quase todos – os cineastas vivos, tem um gosto muito específico por obras e cineastas desconhecidos, tem coleção de VHS e/ou DVD, participa de discussões intermináveis na internet, está sempre escrevendo um roteiro que nunca vai terminar etc.

Tem também o colecionador de Playboy: sujeito cinquentão, nunca casou, não tem namorada, mora no centro de São Paulo ou no centro de alguma outra capital do Brasil e tem uma coleção de Playboys, muitas delas raras. Se você conversar com ele sobre mulheres, ele vai dizer: “São muito complicadas, é difícil conviver…”. A realidade é que ele se apegou tanto à perfeição das mulheres nas revistas ou nos filmes – o colecionador não raro é também cinéfilo – que passou a desprezar as mulheres reais, assim com o audiófilo faz com a música tocada ao vivo.

Em comum entre esses três tipos humanos está a fetichização de uma mídia e de uma época, e o desprezo pelo contexto completo da criação.

Não deixa de ser triste e melancólica essa postura e, como toda fetichização, ela é baseada numa mentira: se o audiófilo assistisse à orquestra que ele mais aprecia – por exemplo, Herbert von Karajan regendo uma sinfonia de Beethoven com a Filarmônica de Berlim – teria uma experiência musical completamente diversa daquela registrada na gravação. Diferente no sentido de pior, naturalmente. Uma gravação musical contém trechos distintos de diferentes registros, os melhores, selecionados como um mosaico. Nenhum registro feito do começo ao fim é tão perfeito.

Se o colecionador visse a modelo que apareceu na Playboy que ele tanto admira no dia mesmo das fotos, a caminho do estúdio ou da locação, teria, também, visto um ser humano completamente diferente daquele que aparece nas fotos – feitas sob um ângulo específico, com maquiagem e iluminação ideal.

Se o cinéfilo vivesse nos anos 1980 muito provavelmente comentaria o que comenta hoje em dia: o cinema vai mal, os filmes estão cada dia piores.

O mundo real nunca vai se encaixar no fetiche, porque ele é real – tudo é perfeito na cabeça do sujeito que vive na fantasia e na imaginação. A paixão fetichizada – seja por obras ou pessoas – é uma paixão infértil. Ela é desconectada da complexidade da vida e das formas feitas tendo a vida como base.

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  1. Certa vez li um texto sobre pessoas mais velhas criticando hábitos da juventude, que o mundo estaria perdido e por aí vai. No final é dito que o texto é do período do império romano ou clássico grego, mas a moral é que sempre foi assim, as vezes é difícil para as pessoas mais velhas desapegarem de suas referências.

  2. É uma questão atemporal. Sempre existiu e acho que a busca pelo perfeccionismo é o que acaba sendo construído dentro da racionalidade humana e acaba atormentando todos. A cultura Woke está tentando acabar com esse ideal, mas só conseguiu mexer com a imagem do ser humano. Que tal mostrar o gato que perdeu os movimentos das pernas e não pode dar aqueles lindíssimos saltos? Ou um professor que consegue destaque por sua empatia e não pelo acúmulo de informações inúteis mas aplaudidas?

  3. Na verdade, esse tipo de comportamento pode ser atribuído à maioria das pessoas mais velhas de qualquer geração, que estão sempre resmungando sobre tudo, que no tempo deles é que era bom, que a juventude hoje não respeita nada e não quer saber de nada, que tudo era melhor e onde vamos parar, blablablá. Tal e qual pais, avós, tios e professores dessas mesmas pessoas faziam. Daí, quando questionadas sobre isso, essas pessoas dizem “ah, mas agora é diferente”.

    1. Porque os mais jovens ainda nao viveram o suficiente para adquirir esses comportamentos. Serao os que dirao amanha: "ah, mas agora é diferente".....

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