A nova propaganda da Apple deformou o universo

De tempos em tempos é feita uma obra tão falsa e tão insincera que o tempo e o espaço colapsam à sua volta. Níveis normais de falsidade e insinceridade já não nos fazem nada, porque os nossos organismos se habituaram às partículas onipresentes de falsidade e insinceridade soltas industrialmente por produtoras de filmes, produtoras de músicas, agências de propaganda, escritórios de relações públicas e jornais. Mas o que aconteceu esta semana foi sem precedentes no mundo. O universo inteiro ficou um pouco mais deformado depois que a Apple fez a sua nova propaganda.

É a propaganda em que a natureza é uma despachada mulher gorda e negra com um assistente gay. Se você não viu, peço que não veja, para que as partículas de falsidade e insinceridade e monstruosa burrice não entrem no seu sangue, alterem o seu DNA e transmitam sabe Deus quais mutações para os seus descendentes durante vinte gerações.

Estou exagerando? Não sei. Tudo que sei é que o vídeo tem 5m17s, e enquanto assistia me peguei várias vezes assumindo uma posição caricatural de dor e desespero, tapando os olhos com as mãos, curvado para a frente como o velho mendigo holandês no desenho de Van Gogh chamado Exausto.

0:10 seg — Tim Cook, CEO da Apple, parece o Visconde de Sabugosa, do qual foram arrancados todos os grãos de milho e o colar de fio de palha, e que sofreu algum tratamento hormonal recente e aparentemente mal-sucedido. Mas isso é só um comentário en passant.

0:26 seg — Se eu fosse o responsável pelo casting dessa propaganda, nunca colocaria uma atriz parda e cheinha como uma subalterna de origem latina fazendo incompetentemente uma tarefa manual num escritório da Apple. Mas que sei eu?

0:38 seg — É inteligente, nos dias de hoje e coisa e tal, mostrar uma imagem de terra tremendo, pássaros voando assustados e copo de água chacoalhando com som de terremoto, como aviso de que uma mulher gorda está prestes a entrar na sala? É isso mesmo, um terremoto porque uma mulher obesa está entrando? É o Chaves? É um filme do Leandro Hassum? É uma cena cortada do filme O Amor é Cego?

0:53 seg — Uma oriental, com emoção religiosa de minoria tendo emoção religiosa New Age pela natureza, nos avisa quem entrou na sala: “Mãe Natureza!”. (Essa é a única pessoa atraente num casting que parece saído de candidatos fracassados ao papel de Salvatore em O Nome da Rosa.)

1:19 — Como lembrou o colega de Crusoé Orlando Tosetto, na série Seinfeld eles fazem piada quando alguém usa a expressão “Let’s cut to the chase” dizendo que ninguém fala isso na vida real. Mas nessa propaganda a Mãe Natureza fala isso, não como piada nem nada. O que isso nos diz sobre a qualidade desse roteiro?

1:21 — Por que a Mãe Natureza é tão antipática? Esse é o principal defeito dessa propaganda cheia de defeitos. Se eu realmente achasse que a natureza é entojada assim, meus esforços para salvá-la, que já não são muitos, seriam reduzidos a bem próximo de zero. Isso não é um efeito geral nas pessoas que assistem a esse vídeo? Não de destruir a Mãe Natureza propriamente, isso talvez só tenha sido eu, mas pelo menos de se importar um pouco menos com ela? Pessoas que fazem propaganda não estudam isso, no efeito psicológico do que fazem? Não pensam nisso? Em que pensam?

1:23 — Mas vem cá, não consigo não pensar nisso, se a Mãe Natureza é uma mulher obesa, não bastava ela comer menos para salvar o planeta? Quanto de recursos naturais ela está consumindo? Alguém vai querer me dizer que a Mãe Natureza ficou assim comendo comida não processada? Ninguém fica assim comendo falafel. Quanto de embalagem de plástico de Cheetos e de Sneakers e latinhas de chantilly de spray ela joga para fora do carro por dia?

2:16 – Eu bem que tinha me perguntado o motivo de ter um outro ator homem e branco e não evidentemente gay além do CEO da empresa nessa bancada de excelsos. Mas é porque eles precisavam que alguém cometesse a gafe de usar um casaco de couro na frente da Mãe Natureza, para levar uma bronca.

2:50 — As piadas funcionam? As piadas não funcionam.

3:43 — “Nosso objetivo é remover permanentemente todo o carbono da atmosfera.” Não sou um cientista, longe disso, mas não parece um pouco demais? Não parece, se factível, perigoso, antinatural etc? Não mataria todas as formas de vida no planeta?

3:58 — A única pessoa que impressiona a Mãe Natureza é outra mulher negra, também obesa. As boas notícias que os outros dão são recebidas com a antipatia que a Apple quer que associemos para sempre à natureza.

4:42 — Tim Cook fala com a Mãe Natureza juntando as mãos em súplica, como um camponês num quadro espanhol do Renascimento tendo uma visão mística de Jesus Cristo em cima de uma oliveira.

Mas enfim, tudo bem, não é o fim do mundo. É só uma propaganda ruim de uma empresa que já foi acusada de trabalho infantil escravo nas minas de cobalto do Congo, e que prometeu que vai parar de fazer isso lá por volta de 2025. Que mais podemos exigir deles? Uma propaganda não completamente cretina?