Bandeira do BrasilA bandeira do Brasil: qual o sentido do amor à pátria? - Foto: Isac Nóbrega/PR

“O patriotismo é o último refúgio de um canalha”

Muito mal-interpretada, a frase famosa de um literato inglês do século 18 talvez ajude a iluminar o ressentimento e a arrogância de muitos homens públicos que proclamam amor ao Brasil
14.09.23

Trabalhei durante todo o primeiro tempo e dei uma espiada no início do segundo. Estava zero a zero quando fui para a cama. No dia seguinte, acordei cedo com uma nova ideia de abertura para o presente texto. Ainda não verifiquei o resultado do jogo enquanto escrevo nesta manhã de quarta-feira, dia 13. Não me importo muito com o time que Nelson Rodrigues chamou de “a pátria de chuteiras”.

O desinteresse pelo esporte nacional decerto já basta para fazer de mim um brasileiro renegado. Mas a coisa não para aí: também não pulo Carnaval. Ruim da cabeça e doente do pé.

Sou ainda pior nas demonstrações cívicas. Não canto o Hino Nacional, não me emociono com sua cadência dura, não me sensibilizo com os hipérbatos desvairados de Osório-Duque Estrada (quantos patriotas saberiam dizer qual o sujeito da primeira frase do hino?).

Aprecio muita coisa que só poderia ter surgido no Brasil. O violão de João Gilberto, a prosa de Guimarães Rosa, a variedade prosódica do nosso português, o vatapá e a moqueca. Mas careço de sentimento profundo pela pátria. 

Desconfio hoje que a ausência de amor pelo torrão natal é uma deficiência minha. Quando era jovem, julgava que era uma virtude, graças à qual eu me afastava do nacionalismo chauvinista e da estreiteza cultural. Bobagem: é perfeitamente possível amar a pátria sem recair nesses vícios.

Na juventude, repeti algumas vezes a frase que escolhi para título deste artigo, sem conhecer nem seu contexto, nem as intenções de seu autor.

***

Foi uma noite de boa conversa letrada em uma taverna de Londres. Ao redor da mesa, estavam, entre outros, Edward Gibbon, o historiador de Declínio e Queda do Império Romano, Samuel Johnson, o mais eminente dos literatos ingleses, e seu amigo e futuro biógrafo, James Boswell, que registrou as discussões daquela sexta-feira, 7 de abril de 1775.

Johnson dominou a conversação. Começou falando de sua especialidade, a literatura. Levantou dúvidas sérias – e certeiras – sobre a autenticidade do poema épico atribuído ao incerto bardo Ossian, obra fajuta que alcançou boa repercussão no século 18. Mais tarde, fez considerações sobre a ferocidade do urso negro, o que deu a Gibbon a oportunidade de provocar Johnson, sugerindo que o ensaísta e lexicógrafo seria ainda mais feroz do que o urso.

Como é próprio de uma mesa de intelectuais, a política acabou se impondo como assunto. Eis como Boswell conta a história em A Vida de Samuel Johnson:

“O patriotismo tendo se convertido em um de nossos tópicos, Johnson subitamente proferiu, em tom forte e determinado, um apotegma que em muitos despertará espanto: ‘O patriotismo é o último refúgio de um canalha’. Mas há que se considerar que ele não se referia ao amor verdadeiro e generoso por nosso país, mas sim à afetação de patriotismo que tantos, em todas as eras e países, usaram como um manto para encobrir interesses pessoais.” 

Como muita gente boa já fez e ainda faz, eu citava a frase sem conhecer as restrições que Boswell fez sobre seu alcance. O apotegma nunca quis ser uma condenação definitiva do patriotismo. Johnson desprezava apenas as proclamações fátuas de amor à pátria. E ele talvez tivesse em mente uma força política que desprezava – a facção dissidente do Partido Whig conhecida como Patriotas.

O ambiente em que Johnson fez sua proclamação na aparência tão definitiva deveria contribuir para matizá-la: a taverna, lugar onde as afirmações mais definitivas podem ser ouvidas com espírito livre e bom humor. Como em um boteco brasileiro.

(“Mas há uma hora em que todas os bares fecham / e todas as virtudes se negam”, disse Carlos Drummond de Andrade em Também Já Fui Brasileiro, poema que discretamente se afasta do modernismo nacionalista de 1922.)

***

O patriotismo caricato que conhecemos hoje não se define pelo amor generoso ao país. É um sentimento peçonhento, mesquinho, que percebe a terra pátria não como o chão fértil onde se erguem casas, escolas, lojas, comunidades, mas como a terra dura onde se cavam as trincheiras da guerra ideológica.

A Horda Canarinha que acreditava defender o Brasil destruindo o patrimônio nacional em Brasília é um exemplo extremo desse patriotismo nefasto. De seu lado, o governo que os vândalos pretendiam derrubar nutre seus próprios ressentimentos nacionalistas contra inimigos internos e externos, reais e imaginários.

Nas entrelinhas de sua crítica à adesão brasileira ao Estatuto de Roma – que instituiu o Tribunal Penal Internacional (TPI) –, Lula deixou transparecer aquele patriotismo negativo que anima boa parte da esquerda brasileira: o antiamericanismo. Vários países que não aderiram ao TPI foram citados na queixa do presidente contra a corte que não deixa seu amiguinho Putin vir brincar no Planalto. Mas é significativo que, no momento em que Lula buscou negar uma inferioridade brasileira que ninguém afirmou ou sugeriu, só uma nação estrangeira tenha sido mencionada: “Eu quero saber por que o Brasil é signatário de um tribunal que os Estados Unidos não aceitam. Por que somos inferiores e temos de aceitar uma coisa?”.

O patriota generoso criticaria a hipocrisia da superpotência que se proclama defensora da liberdade mas não admite que seus cidadãos sejam julgados em um tribunal internacional por violações dos direitos humanos. O patriota ressentido almeja que seu país seja tão arrogante quanto os Estados Unidos.

***

Desfilando em carro aberto ao lado do marido no 7 de setembro, Janja fez o L para a claque petista. Por si mesmo, o gesto talvez seja quase insignificante. Mas representa bem a ambiguidade petista: é o partido que se submete à pátria ou a pátria ao partido?

***

Da minha janela, vejo uma bandeira brasileira no pátio de um supermercado. Grande demais para que os fracos ventos a desfraldem, ela pende de seu mastro tristonho. Carros, ônibus, pedestres passam pela avenida sem notá-la.

A paisagem não é bonita, mas gosto dela. Tenho carinho por este bairro paulistano onde fiz minha morada em 2004, onde meus filhos nasceram e hoje estudam. Carinho ainda não é amor, e o bairro não é o país. Mas tenho algo aqui que não encontro em outro lugar.

O Brasil venceu o Peru por um a zero.

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  1. Nunca tinha ouvido está frase, mas gostei muito dela e da sua história. Importante diferenciar o patriotismo verdadeiro do tóxico, tão propalado por certa seita fanática, cega, surda e burra (cada um que faça sua interpretação). Tal como o autor, estou longe de ser um patriota, mas depois de ler um texto, talvez eu tente olhar com mais carinho pra este nosso Brasil, tão injustiçado e maltratado.

  2. Na minha humilde condição de leitor acho que o nobre autor quis dizer foi....AMBAS AS OPÇÕES EM 2022 ERÃO AS PIORES POSSÍVEIS. Um BORA BOTAS que IGNORANTE, ESTÚPIDO, IDIOTA, MENTIROSO, CANALHA, que nunca destacou-se na carreira política, mas pasmem, ACABOU PRESIDENTE em 2018. E o OUTRO....DEUS do Céu, nunca trabalhou na vida (morcegando no Sindicato) um DESCONDENADO, CANALHA, MENTIROSO, ESTÚPIDO, IGNORANTE, IDIOTA. Percebera alguma GRANDE DIFERENÇA, não, mas paciência, fomos NÓS que escolhemos.

    1. Que lindo texto.Ainda temos Jornalistas neste triste Pais que só nos deixam, a cada dia que passa tristeza e desalento, Não contamos com nenhum Poder para nos defender. Obrigada MIL.

  3. Apesar de Descondenados, de Pangarés Sociopatas, de morcegões togados, de políticos salafrários e outras aberrações ainda me emociono com o hino do meu país e para mim o violão do João Gilberto é um pé no saco.

    1. Sem sombra de dúvida, o sujeito da 1ª frase do hino nacional são “as margens plácidas do Ipiranga”. Para verificação, basta colocar a frase na ordem direta (sujeito, verbo, objeto direto/indireto ou predicativo do sujeito): “As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico”.

  4. Ah, Jerônimo, gostaria muito que vc lesse, ou desse pelo menos uma folheada no e-book na Amazon, o autobiográfico “O ciclo gestatório de um Homem”, também em papel no Clube de Autores; o Brasil está precisando de Homens…

  5. Maravilhoso ensaio! Votei em Tebet no primeiro turno, e, no segundo turno, para escorraçar o psicopata, torci pro Lula, mas não votei nele; já deu o que tinha que dar...

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