Agência SenadoSenado: controle sobre a diplomacia foi reforçado na última Carta

Parlamento e política externa: a experiência do Brasil

Nossa Constituição pode incluir tratados sobre direitos humanos, desde que aprovados por maioria qualificada pelo Congresso. Foi o que abriu o caminho para a adesão ao TPI
15.09.23

Nos países de regime puramente parlamentarista, a política externa é apenas um setor do gabinete que comanda o governo a intervalos regulares, sendo que a maioria parlamentar é que dá o suporte à diplomacia do Estado, sob a responsabilidade do primeiro-ministro, com a sua execução a cargo do chanceler, quase que invariavelmente um parlamentar eleito. Nos regimes presidencialistas, a política externa pertence ao domínio exclusivo do Executivo, sob o comando do chefe de governo que é também o chefe de Estado; o chanceler pode ser um parlamentar, mas não é obrigatório, pois pode ser um jurista, um magistrado, um intelectual acadêmico, ou até mesmo um diplomata de carreira. Existem variações, obviamente, a esse quadro dicotômico, pois sistemas parlamentaristas podem exibir presidentes com capacidade e autoridade para tratar de defesa e política externa, como é o caso da V República na França; no caso dos Estados Unidos, por outro lado, o sistema presidencialista pode ser temperado por forte participação e até preeminência do Congresso em diversas áreas, como em comércio e finanças, moeda, poder de fazer a paz e a guerra com potências estrangeiras, sendo uma espécie de governo congressual, como já havia esclarecido Woodrow Wilson, ainda no final do século 19, quando presidente da Universidade Princeton.

A experiência brasileira começa com um sistema monárquico parlamentar, cujo funcionamento efetivo só intervém no Segundo Reinado, quando os chanceleres eram invariavelmente deputados ou senadores, mas poucos com a preeminência de um Visconde do Uruguai, ou Visconde do Rio Branco, que trataram de forma relativamente exitosa de casos espinhosos, como o tráfico e a escravidão ou os conflitos com os vizinhos do Prata. A imposição da República mudou muito pouco a tessitura da diplomacia na prática, que continuou sendo representada por políticos eleitos, mas já com um número mais elevado de personalidades eminentes da vida pública no papel de chanceleres, inclusive alguns da própria carreira, como o próprio Barão do Rio Branco, Domício da Gama e alguns outros.

O “breve período” de 15 anos com Getúlio Vargas como chefe de Estado – primeiro como presidente de um governo provisório, depois eleito pelo Congresso Constituinte de 1934, finalmente como ditador do Estado Novo – inaugurou a chamada “diplomacia presidencial”, que pode possuir algumas virtudes executivas e operacionais, quando o supremo comandante apresenta qualidades de estadista, mas que também pode ser um convite à mediocridade, quando o chefe de Estado possui muito pouco interesse pela política externa. Tivemos diplomacias presidenciais de grande ativismo e prestígio, como sob Juscelino Kubitschek, Ernesto Geisel, Fernando Henrique Cardoso e o próprio Lula (descontando-se o lado de “diplomacia partidária” que se insinuou em diversas vertentes da política externa). A ditadura militar, diferente da opção tradicional da República até 1964, até concedeu maior espaço aos próprios diplomatas no cargo de chanceleres (um logo de início, depois três na sequência dos últimos generais presidentes), mas durante todo o período republicano, até a redemocratização, a participação do Parlamento nos assuntos externos foi bastante modesta, para reconhecer uma realidade tangível: a maior parte dos programas dos partidos existentes concedia muito pouca importância, se alguma, à política externa em suas mensagens à nação ou intervenções nos dois plenários do Congresso.

A redemocratização e, sobretudo, a Constituinte Congressual, com a elaboração da nova Carta, promulgada em outubro de 1988, produziram mudanças significativas nesse cenário, inclusive porque essa década foi chamada de “perdida”, começando pelos dois choques do petróleo, na década anterior. A “perdição” continuou pela crise da dívida externa, a partir de 1982, que precipitou o Brasil numa longa estagnação, que não parece ter sido realmente superada nas décadas seguintes, tendo, ao contrário, se desdobrado em três lustros de hiperinflação e quatros programas frustrados de estabilização macroeconômica, até o Plano Real, em 1994. Mas a Constituição trouxe novidades no plano da política externa, com um reforço do controle parlamentar sobre a diplomacia prática, que passou a ser enquadrada pelas cláusulas de relações internacionais inscritas no Artigo 4 da nossa oitava Constituição (o mesmo número de moedas que tivemos ao longo de cinco décadas). O senador Franco Montoro ainda encontrou a oportunidade de incluir um parágrafo único nesse Artigo 4, instruindo o Brasil a buscar “a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.”

O que a Constituinte fez foi reforçar o controle do Congresso sobre os procedimentos para aprovar tratados e convenções internacionais, determinando que todos os atos que implicassem em “encargos gravosos” para o país, em qualquer nível de acordos externos, tivessem de ser submetidos à apreciação congressual, tendo em vista a tendência de governos anteriores de não submeter os chamados “acordos executivos” ao Poder Legislativo. É um fato que acordos de cooperação externa são geralmente genéricos, prevendo apenas possibilidades de interações em grandes áreas de atividades – educação, ciência e tecnologia, etc. –, sendo que protocolos subsequentes é que trazem os sobreditos “encargos gravosos”. Mais tarde, a Constituição foi emendada, no sentido de equiparar tratados sobre direitos humanos a emendas constitucionais, desde que aprovados por maioria qualificada pelo Congresso, o que abriu o caminho para que o Brasil pudesse aderir ao Estatuto de Roma, regulando o Tribunal Penal Internacional.

Mais importante, até, do que a mera regulação constitucional da atuação estatal na frente externa e na condução da diplomacia, foi o crescente ativismo dos partidos e dos congressistas no debate e no controle da política externa e na diplomacia do Executivo. As comissões de relações exteriores (e de defesa nacional) das duas Casas passam a oferecer teatros de debates, com seguidos convites aos chanceleres e outras personalidades, para debater temas candentes da política externa conduzida pelo Executivo. Dentre os partidos, o PT foi um dos primeiros a atribuir maior importância em seu programa (e nas plataformas eleitorais) à política externa, talvez até por suas conhecidas vinculações estrangeiras, no campo dos regimes socialistas e dos movimentos de esquerda em países capitalistas (aos quais deve bastante apoio político, e até financeiro, até chegar ao poder, em 2002). Tal programa partidário e plataformas eleitorais seguem a postura básica da visão sindicalista do mundo exibida pelos seus principais líderes, ademais do esquerdismo típico do terceiro-mundismo acadêmico, geralmente anti-imperialista (ocidental) e antiamericano, em especial.

Não é surpresa descobrir que as principais propostas dos partidos progressistas são feitas em torno da responsabilização atribuída às democracias de mercado desenvolvidas pela miséria do mundo periférico, e também pelas desigualdades sociais entre países e regiões. São elas que devem pagar por todas as carências ressentidas pelo chamado Sul Global, uma construção fantasiosa que recobre o conjunto de nações às quais antigamente se dava o nome de subdesenvolvidas, depois em desenvolvimento, finalmente divididas em emergentes, algumas, ou pobres, uma grande maioria na África, na Ásia do Sul e, parcialmente, na América Latina. Mesmo parlamentares conservadores ou liberais, aceitam tal divisão simplista do mundo, como se o desenvolvimento das nações atrasadas só pudesse ser feito a partir da ajuda externa, da transferência de tecnologia, de subsídios generosos e preferências comerciais unidirecionais. Pouco se fala de educação, de ganhos de produtividade a partir de sólidas políticas econômicas conduzidas por uma governança responsável, da ausência de corrupção nas instituições públicas ou de medidas de abertura econômica e de liberalização comercial, como forma de integrar essas nações à economia mundial.

Parlamentares devem obviamente participar mais intensamente dos debates e de avaliações sobre a política externa, assim como se envolver mais frequentemente com a condução da diplomacia nos grandes foros mundiais e nas relações bilaterais ou regionais, mas seria recomendável que eles o façam a partir de um conhecimento mais sólido sobre a natureza das relações internacionais, sobre a própria história diplomática do Brasil, levando em conta a complexidade da política internacional, especialmente em sua vertente econômica e tecnológica, assim como tendo como fundamento uma compreensão adequada sobre as razões e origens das dificuldades de desenvolvimento sustentado do país. Nossa condição de país dotado de uma grande economia, mas de um número excessivamente grande de pobres e de miseráveis, não se deve a qualquer iniquidade do sistema político e econômico mundial – tanto porque outras nações, com ênfase na franja da Ásia Pacífico, mostraram como se pode crescer e distribuir renda –, mas sim deriva de deficiências integralmente “made in Brazil”, produzidas inteiramente no plano interno.

Os países que mais decisivamente se inseriram na globalização – entre eles dois gigantes populacionais que, até duas gerações atrás, carregavam centenas de milhões de pobres e miseráveis, a China e a Índia – são os que conseguiram arrancar boa parte de seus cidadãos de uma miséria ancestral para colocá-los numa situação de pobreza aceitável, para depois enveredar por um caminho de modesto bem-estar, em direção de um status de classe média mundial. Os parlamentares brasileiros deveriam saber que os que assim o fizeram adotaram medidas típicas de um ambiente de negócios globalizado: um grau decrescente de estatização, maior liberdade nos mercados privados, boa governança, corrupção moderada, capital humano de alta qualidade e abertura ao comércio e aos investimentos estrangeiros. Todas as evidências indicam que o passo inicial deve ser dado internamente, não por qualquer declaração de intenções em foros multilaterais ou de blocos de países. No caso do Brasil, não é o Brics que vai potencializar o bem-estar social no Brasil, e sim políticas econômicas que guardam uma não estranha vinculação com o mundo da OCDE.

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor

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  1. Educação de qualidade. Enquanto não investirmos na educação de base continuaremos refens do discurso demagogo de populistas corruptos. Artigo impecável.

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