Foto: DivulgaçãoO tenista Thomaz Bellucci, que acaba de se aposentar, em foto de 2018, quando disputava o torneio de Roland Garros

A maestria profissional do tenista Thomaz Bellucci

“Eu não poderia existir significativamente na mesma quadra com esses jogadores obscuros e famintos. Nem você”, ensina David Foster Wallace
03.03.23

O segundo maior tenista brasileiro da história se aposentou, e você provavelmente nem ficou sabendo. Thomaz Bellucci foi o melhor depois de Gustavo Kuerten, e a distância entre os dois é mais cruel do que deveria. Os números são assim, cruéis. Guga passou 45 semanas no topo do ranking mundial de tênis. A melhor posição de Bellucci foi o 21º lugar, em 2010. Parece pouco na comparação, mas esse ranqueamento indica que o segundo melhor tenista brasileiro da história foi um semideus.

Você conhece alguém que seja ou tenha sido, por uma semana que seja, o 21º do mundo em alguma coisa? “Não é apenas a maestria atlética que atrai o interesse pelo tênis em nível profissional. É também o que este nível requer — o que é necessário para o jogador ranqueado entre os 100 no mundo chegar lá, o que é necessário para ficar, o que seria necessário para subir ainda mais contra outros homens que pagaram o mesmo preço que ele pagou”, escreve David Foster Wallace no ensaio Tennis Player Michael Joyce’s Professional Artistry as a Paradigm of Certain Stuff about Choice, Freedom, Limitation, Joy, Grotesquerie, and Human Completeness (algo como: a maestria profissional do tenista Michael Joyce como paradigma de certas coisas sobre escolha, liberdade, limitação, alegria, grotesqueria e completude humana).

Foster Wallace, um tenista de carreira abortada na origem que se tornou um dos escritores jovens mais cultuados dos EUA antes de tirar a própria vida, em 2008, escreve no ensaio sobre as habilidades espantosas de Michael Joyce, que ocupava, em 1995, o 79º lugar no ranking mundial. Segundo o autor, Joyce tinha características semelhantes às do compatriota Andre Agassi, mas não conseguia manter o mesmo nível de jogo por tanto tempo quanto o lendário americano. “Eu não poderia existir significativamente na mesma quadra com esses jogadores obscuros e famintos. Nem você. E não é apenas uma questão de talento ou prática. Há algo mais”, constata.

“As restrições em sua vida foram, na minha opinião, grotescas; e de certo modo Joyce é grotesco. Mas a compressão radical de sua atenção e seu ser permitiram que ele se tornasse um praticante transcendente de uma arte — algo que poucos de nós conseguimos”, segue Foster Wallace, completando: “Isso permitiu que ele visitasse e testasse partes de sua psique que a maioria de nós nem sabe ao certo se tem, que manifestasse concretamente virtudes como coragem, persistência diante da dor e da exaustão, performance sob escrutínio exaustivo e pressão”.

Bellucci começou a competir aos 11 anos, como juvenil. A história é muito semelhante para todos os tenistas que conseguem atingir o nível profissional — disciplina, privações e dedicação —, mas com um pouco mais de drama num país com preocupações mais urgentes do que o esporte, como o Brasil. Ganhou quatro títulos de simples da Associação de Tenistas Profissionais (ATP), um de duplas e foi a outras quatro finais individuais, mas teve a carreira prejudicada por lesões. “Criticavam meu mental, mas essa sempre foi a parte forte para mim. Foi o físico que me barrou”, desabafou após encerrar a carreira de 19 anos com uma derrota para o argentino Sebastián Báez no Rio Open, em 22 de fevereiro.

É dos corpos e das mentes que dependem essas carreiras. Para além da dedicação e da obsessão, são os ossos e a capacidade de concentração que distinguem os semideuses dos deuses numa quadra de tênis. O sérvio Novak Djokovic bateu nesta semana o recorde de tempo na liderança do ranking mundial: 378 semanas. Até então, a alemã Sfeffi Graf detinha o maior feito, de 377 semanas. O suíço Roger Federer, que se aposentou no fim do ano passado ostentando o status de maior tenista da história, é apenas o quinto nesse critério, com 310 semanas.

Foster Wallace também escreveu sobre Federer, em 2006. Em Federer Both Flesh and Not (não vou nem me arriscar a traduzir, mas é algo sobre o suíço ser de carne e osso e, ao mesmo tempo, não ser), o americano diz que o tênis é um jogo de polegadas — ou centímetros. Não apenas os centímetros que determinam se a bola cairá dentro ou fora da quadra, mas os que definem o ponto de contato entre a esfera e a raquete, que determinará não apenas a força do golpe mas o ângulo que ele gerará e, por fim, o desafio que vai impor ao adversário.

“Federer é capaz de ver, ou criar, lacunas e ângulos para winners [pontos vencedores] que ninguém mais consegue vislumbrar”, descreve o escritor, que exalta a elegância do suíço em meio à brutalidade atlética que se estabeleceu no mundo do tênis — o espanhol Rafael Nadal, maior rival da carreira de Federer, é o grande expoente desse estilo de força. Pois o suíço jogava como se assoviasse Mozart durante um show do Metallica, compara Foster Wallace, para se corrigir linhas depois, em uma de suas infinitas notas de rodapé: “Federer é Mozart e Metallica ao mesmo tempo”. A naturalidade quase sem esforço com que jogava se compara apenas à tranquilidade com que Michael Jordan pulava além da capacidade humana, à facilidade com que Muhammad Ali flutuava pelo ringue e disparava dois ou três jabs na velocidade requerida para acertar apenas um ou à placidez com que Zinedine Zidane dominava e conduzia a bola.

São figuras sobre-humanas, enfim, que se dedicaram tanto quanto seus adversários, mas que tinham algo mais do que corpos e mentes moldados para a disputa e lapidados desde a juventude. Federer era, sim, um grande trocador de bola do fundo de quadra, como o tênis moderno exige, mas não apenas isso. “Tem também sua inteligência, sua antecipação oculta, seu sentido de quadra, sua habilidade de ler e manipular oponentes, de alternar bolas de efeito e rápidas, de enganar e disfarçar, de usar previsão tática e visão periférica e alcance cinestésico em vez de apenas imprimir um ritmo rotineiro”, conclui Foster Wallace, resumindo que tudo isso expôs os limites e as possibilidades da forma como o tênis masculino era jogado até o suíço pisar na quadra.

Bellucci perdeu as duas partidas oficiais em que enfrentou Federer — e ganhou uma de exibição, em São Paulo. No último dos confrontos à vera, nas oitavas de final do ATP 500 da Basileia, em 2012, o suíço só venceu após fazer 7/5 no terceiro set. “Estou feliz pela vitória, porque Bellucci sempre está jogando seu melhor contra os tenistas mais fortes”, disse o melhor da história. Eu não poderia existir significativamente na mesma quadra com Bellucci. Nem você.

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  1. C/ 78 anos e muitas dores, ainda jogo tênis recreativamente. Adoro! Viva Kuerten, Bellucci, Maria Esther Bueno, Bia Haddad, e tantos outros de valor e viva os torneios! Ah!,e viva a Lava Jato!

  2. Gosto muito do espaço ao esporte que tem sido dado na Crusoé com essa nova reformulação da revista. Quanto ao artigo em si, é verdade. Eu já joguei futebol contra um time com jogadores semi-profissionais e mesmo assim a diferença de nível era absurda. Mesmo uma carreira que não foi tão galardoada requer um esforço brutal e garantidamente o atleta tem uma qualificação inalcançável para qualquer um de nós

  3. Que obra prima das palavras e das sutilezas, sou fan do Guga mas fiquei impressionado com esta homenagem ao Thomaz Belluci

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