Foto: Tânia Rego/Agência BrasilCompras no supermercado: a inflação elevada foi possivelmente a máquina de tortura mais mortal criada pela ditadura brasileira

O crime da tabela do imposto de renda

O fato de ela não ter sido corrigida corretamente ao longo dos anos significa que o governo continuou a cobrar o imposto inflacionário sobre os ganhos de renda da população
03.03.23

O governo agora barganha aumentos de impostos para corrigir um crime cometido: a não correção da tabela do imposto de renda.

Conta-se que um general soviético em visita a Londres foi recebido por oficiais do governo para conhecer o país e a economia local. Em alguma das tantas visitas a fábricas e mercados, perguntou: quem é o general responsável pela distribuição de pão em Londres?

Pode parecer uma piada, mas no Brasil dos anos 60 e 70, este era exatamente o caso, ou quase.

Eduardo de Carvalho, o chefe da assessoria econômica do Ministério da Fazenda na gestão Delfim Netto, relatou o funcionamento dos índices de preços no Brasil da ditadura.

Segundo Carvalho, Delfim era extremamente preocupado com os preços na Guanabara, que possuíam maior peso no índice preparado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). A preocupação chegava ao ponto de o ministério negociar reposições de produtos na Ceasa do Rio, para controlar o índice.

Funcionava assim: uma geada em São Paulo reduzia a oferta de tomate. O ministério, sabendo disso, ligava para as cooperativas, exigindo que mais caminhões do produto fossem mandados para o Rio. A cooperativa fazia suas exigências em troca, recebendo benefícios como andamento célere de assentamentos, e magicamente mais tomates brotavam no Rio de Janeiro.

Quando os pesquisadores da FGV iam medir os preços, o resultado é que a oferta artificial os reduzia.

Edmar Bacha certa vez chegou a calcular a diferença. Segundo Bacha, os preços de alimentos chegaram a subir 26% no país em 1973, mas apenas 15% no Rio de Janeiro, onde o governo garantia atenção especial.

Este caso ilustra nossa relação com a inflação como poucos. Talvez perca para a infame “inflação do chuchu”, quando o então ministro Mário Henrique Simonsen atribuiu à alta do alimento o índice de inflação acima do esperado.

O motivo disso está na composição dos chamados “índices de inflação”. O objetivo do índice é capturar a perda do poder de compra. Para tanto, o instituto responsável cria uma cesta de consumo hipotética. No caso do IPCA, o índice usado como padrão no Brasil hoje, a cesta é oriunda Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) e busca replicar o consumo de uma família brasileira média.

Isso significa que cada item possui um peso. Alimentos, energia, vestuário, habitação, transporte etc. Cada um possui um percentual que contribui para o  índice de inflação.

Graças a isso, Delfim e seus assessores conseguiam promover reduções esporádicas no índice. Se o preço do tomate estava artificialmente menor, o percentual dos alimentos caía e, consequentemente, o índice geral também era menor.

Mas esse não é um caso isolado. Quando Dilma Rousseff e a Petrobras congelaram o preço dos combustíveis, uma medida que resultou em R$ 120 bilhões em prejuízo, o resultado foi uma inflação menor.

O motivo é simples: se o índice de inflação mede a alta de preços, então se alguém pagar a alta antes de os preços subirem para o consumidor, não há aumento no índice de inflação.

Foi a mesma tática de Jair Bolsonaro em 2022, com uma redução nas alíquotas de impostos de produtos que são sensíveis ao orçamento familiar.

Pode parecer tudo muito bacana, afinal, os preços não sobem para o consumidor, mas tudo isso esconde um problema significativo: o Brasil até hoje não entende muito bem o que é a inflação.

Somos o sétimo país mais desigual do mundo, em boa medida por sermos  também o único a conviver com inflação alta sem estar em guerra.

A inflação elevada foi possivelmente a máquina de tortura mais mortal criada pela ditadura brasileira. Graças aos índices de correção, que carregavam a inflação de um ano para o outro (e em muitos casos continuam fazendo isso no Brasil), além da prática da conta movimento, que permitia ao governo se financiar imprimindo dinheiro, criamos um monstro que torturava as famílias mais pobres.

O mesmo Mário Henrique Simonsen, junto de Rubens Penha Cysne, calculou  que em 1993, o último ano antes do Plano Real, o chamado “imposto inflacionário”, chegou a 6% do PIB. Metade disso para o governo e metade para os bancos, que são aqueles que criam a moeda.

Considere que os 50% mais pobres da população fica hoje com 10% da renda. Agora considere o peso de 6% do PIB recaindo majoritariamente sobre essa parcela da população e é possível entender o tamanho do problema.

Enquanto a classe média e os mais ricos podiam acessar o overnight, os mais pobres estavam inteiramente expostos à inflação, em um país que até bem pouco tempo tinha metade da população adulta sem contas em bancos.

Segundo os mesmos autores, o Imposto Inflacionário desabou para 0,3% do PIB durante o Plano Real. Uma queda de 95%. Trata-se, portanto, do maior programa social da história, corrigindo distorções avassaladoras.

Com todo este avanço, porém, como os dois casos recentes apontam, os políticos locais não parecem ter entendido o que é inflação.

Está na mesa a proposta de corrigir a tabela do Imposto de Renda.

Se fosse totalmente corrigida, a tabela implicaria que a primeira faixa de Imposto estaria em R$ 4 mil, contra os cerca de R$ 2 mil atuais.

O fato de a tabela não ter sido corrigida corretamente ao longo dos anos significa que o governo continuou a cobrar o imposto inflacionário sobre os ganhos de renda da população.

Em suma, os salários subiram não por um aumento de renda real, mas para compensar a alta de preços. E o governo se viu no direito de tributar este aumento.

Agora, para corrigir esse crime, em que o dono da moeda cobra impostos sobre os pobres que a utilizam, o governo espera encontrar “compensações”.

Nas próximas semanas, você continuará a ver o governo tentando taxar outros bens e serviços para compensar a perda que terá ao reduzir o tamanho do roubo que praticou ao cobrar da população impostos sobre ganhos gerados pela perda de valor da moeda do próprio governo.

É importante estar atentos, especialmente para entendermos a história brasileira.

Os resultados de um período de inflação elevada foram trágicos para o país. Levaram a uma explosão de pobreza, marginalidade e outras tantas questões que passam longe de um ideal de país.

Estamos falando aqui de um ato intencionalmente perpetrado contra a população mais pobre, e cuja correção está sendo barganhada.

Essa barganha, que mais se assemelha ao pedido de resgate de um sequestro no qual os mais pobres seguem reféns da moeda estatal, ganha contornos “sociais” por parte da mídia afeita a elogios ao governo (a depender de qual governo).

Você verá pessoas tentando convencê-lo que aumentar impostos é bom, pois permitirá corrigir a tabela de imposto de renda. Nada mais falso. 

A não correção da tabela é uma destruição perpetrada contra quem ganha menos e sua correção é uma obrigação moral da parte de qualquer governante que não tenha intenção de se tornar cúmplice de um crime.

Felippe Hermes é jornalista

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Ao Felipe parabéns em nos lembrar que o maior e mais injusto imposto cobrado a TODOS os brasileiros, em especial aos mais pobres, é a INFLAÇÃO. A correção da Tabela do IR deveria está em lei e quem a descumprisse ser processado por crime de responsabilidade. O dinheiro que nos é confiscado através da "não correção" vai alimentar o sempre insaciável Tesouro que gasta mal e é pra lá de perdulário. Culpa unicamente dos nossos representantes, eleitos pra defender nossos direitos, ops....será????

  2. A não correção da tabela do IR é o aumento de imposto mais imoral que existe. Por que a quase totalidade da população não percebe que foi lesada. Mas tão imoral quanto ela é a cobrança de impostos sobre o "ganho de capital" da venda de bens. "Esquecem-se" de que a maior parte, se não todo esse "ganho", é simples reposição da inflação. Ou seja, no Brasil até sua inflação é taxada.

  3. Excelente análise que deveria ser lida por todos os políticos. Estes, afinal são os grandes responsáveis por toda a destruição desta Nação. Fazem leis para colocarem maracutaias, aprovam indicados para a Justiça corrupta e leniente, aprovam e chantageiam o orçamento a seus favores, etc.. Afinal esperavam o que mais... O resultado foi encontrarem uma forma legal de roubarem a população trabalhadora e ordeira, tudo com a conivência dos três poderes!!!

  4. O desgoverno ao fazer a "reforma tributária" mero remendo inútil e sazonal quer mesmo é turbinar a arrecadação para a roubalheira da politicalha de muitos matizes ... sem uma reestruturação da economia onde o trabalho valha a pena teremos em cinco anos o mesmo problema e agravado.

Mais notícias
Assine agora
TOPO