Arthur Lira discursa na CâmaraArthur Lira discursa na Câmara: poder oligárquico -Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Como analisar o governo Lula: passo 2

Lula finge que Arthur Lira e o Congresso não estão lá; os parlamentares estão só esperando para mostrar quem são os novos donos do pedaço
03.03.23

A lição mais primária da política, que remete à sua analogia como o exercício de um tipo de guerra, é a de que é preciso ocupar espaços para exercer o domínio. Nesse sentido, a ciência política também é uma disciplina geográfica. Essa dimensão aparece no esforço analítico principalmente quando se fala em construção de condições de governabilidade, tema corrente entre os brasileiros desde a redemocratização.

Nosso modelo decisório é de natureza consensual — e não majoritário, como é o caso dos Estados Unidos. Isso significa que é preciso construir grandes maiorias dentro de um sistema bastante fragmentado de partidos políticos e interesses locais (estaduais ou municipais).

A principal maneira de unir minorias tem sido distribuir recursos de poder. Trata-se do que o cientista político Sérgio Abranches chamou de “presidencialismo de coalizão”, mas que foi tratado de forma seminal no livro Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional, de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, no qual se sistematizou a construção da governabilidade como um processo de trocas envolvendo barganhas entre parlamentares e o presidente da República em torno do acesso ao Orçamento e cargos, em troca de apoio parlamentar.

Esse modelo tem sofrido alterações, principalmente com o Congresso Nacional avançando sobre o terreno do Planalto. Em uma mudança ainda pouco estudada, além de Orçamento e cargos, deputados e senadores passaram a exigir maior protagonismo na formulação de políticas públicas, especialmente no processo de negociação com a sociedade, que antes cabia quase exclusivamente à Casa Civil e aos ministérios. Além disso, parlamentares passaram a ter nos últimos anos o controle da destinação de parcelas cada vez maiores do Orçamento.

Para analisar o governo Lula, portanto, é preciso partir do fato de que o território que o PT tinha mapeado no seu primeiro período, entre 2003 e 2016, mudou profundamente.

A única coisa constante é o tamanho das bancadas estaduais. De resto, ideologicamente, há uma direita organizada que não havia anteriormente; adversários do passado, como o PSDB, sumiram; protagonistas passaram a ser coadjuvantes, como o MDB; o número de cargos para a distribuição entre aliados diminuiu com a Lei das Estatais; e, apesar de o Executivo ainda ter controle do timing de liberação de recursos, deputados e senadores hoje dependem mais de um bom relacionamento com as presidências das respectivas Casas para garantir dinheiro para as suas bases do que da proximidade com Lula.

O fato — inconfessável publicamente por parte dos petistas — é que eles não têm a mínima ideia do que esperar nesse novo cenário. Por exemplo, como lidar com o fato de que o União Brasil, na Câmara, decretou independência antes mesmo de a temporada de votações começar? Quem é, na verdade, esse novo parceiro de coalizão?

O PT já deu sinais de que entende que a paisagem está modificada. Não apenas abdicou de lançar candidato próprio à presidência da Câmara e apoiou a reeleição de Arthur Lira (PP-AL) à presidência da Casa como empenhou ministérios para ajudar Rodrigo Pacheco (PSD-MG) a garantir o Senado e construir ali uma barreira contra eventuais surpresas vindas dos deputados. A lentidão da distribuição de cargos do segundo escalão também evidencia que o governo não sabe sobre que chão está pisando e, assim, prefere seguir devagar.

A tendência é que o início do governo tenha caráter experimental, isto é, que mude de estratégia à medida que for ficando mais familiarizado com o relevo. A distribuição de cargos, o tempo de execução do Orçamento e o protagonismo que será dado às lideranças no Congresso é o que vai determinar o nível de governabilidade.

Aplicando esse modelo ao governo de Jair Bolsonaro, percebe-se que, no momento de balancear os três fatores, o Executivo se contentou em dar aos parlamentares protagonismo e aceitou o controle legislativo do Orçamento. Os cargos, no entanto, mantiveram-se na órbita do presidente, que recorreu aos militares para o seu preenchimento.

Lula, por enquanto, sinalizou que quer restaurar um desenho familiar a ele, mesmo demonstrando um respeito meio a contragosto pela correlação de forças existente, como se falou acima. Ele contou com a ajuda do STF, em dezembro, para recuperar o Orçamento e elegeu a distribuição de espaços na Esplanada como carro-chefe para a construção da base, mas ainda não sinalizou qual protagonismo o Legislativo terá na sua gestão, tendo concentrado a formulação das principais políticas no Executivo.

E esse é exatamente o ponto central. Lula desceu para a trincheira das principais decisões, fincou acampamento e continua fingindo que Arthur Lira e o Congresso não estão lá. Aparentemente, no entanto, os parlamentares estão apenas esperando o melhor momento para mostrar quem são os novos donos do pedaço, e há claramente um conflito à vista, porque o espaço distribuído até agora entre aliados duvidosos não é suficiente para retirar da mesa grande da formulação nacional os parlamentares que lá se sentaram nos últimos anos.

Aliás, pode até ser que, mesmo mudando a Lei das Estatais, não haja cargo suficiente para restaurar o velho equilíbrio. E aí, ou o PT evolui para vivenciar um modelo de coabitação entre Executivo e Legislativo, contribuindo para o assentamento da nova ordem desse processo decisório, aceitando-o como um fato dado, ou vai viver de conflito em conflito, pressionado quanto aos resultados das suas iniciativas legislativas e constantemente inseguro em relação às verdadeiras fronteiras do seu território.

Para a democracia, um maior controle entre os Poderes é salutar, mesmo que comprometa um pouco a velocidade e a extensão das decisões. Especialmente no caso de um país dividido como o Brasil, ter um Congresso que dá voz ao lado perdedor e que obrigue o PT a fazer concessões é algo que ajuda a consolidar a aceitação do resultado das eleições. Para a economia, a existência de freios também costuma manter a previsibilidade do futuro, desde que o resultado final da interação de forças não resulte em paralisia e desde que o loteamento político de empresas e agências regulatórias não comprometa (muito) a qualidade das decisões.

 

Leonardo Barreto é cientista político

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  1. Excelente abordagem Politica/Adm. Novos horizontes estão assinalados. Uma evolução desse modelo existente, fará um bem muito bom a todos, inclusive com o estorvo do STF. E tomara que este modelo edite normas para o STF com data limite, e acabe com este infinito/velhice dessas naturezas humanas distorcidas. Pode ser que daqui a uns 15 a 20 anos o Brasil renasça mais vigoroso e equilibrado.

  2. Sem grandes mudanças nesse governo, até porque Lira detém o poder do país, ou seja, tudo vai depender de quanto vai cair na mão dele.

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