Casa Rui Barbosa

A nossa crise moral, segundo Rui Barbosa

Intelectual que morreu há 100 anos dizia que "a difícil situação do país é fruto de um contínuo excesso de despesas realizadas a esmo, sem razão evidente de impreterível necessidade"
03.03.23

Rui Barbosa é uma personalidade complexa demais para um país que sempre privilegiou o populismo e a idolatria política. No centenário do seu falecimento, ainda temos dificuldade de entender uma mente sofisticada como a dele, capaz de se tornar sinônimo de inteligência na sua época.

Seus discursos imensos e cheios de verborragia ultrapassaram épocas e dividiram os críticos literários, que ora exaltam a perfeição da sua gramática, ora acusam-no pela vertigem intelectual de uma retórica fria e sem poesia. Mas o nosso ilustre Rui terminou seus dias com reconhecimento unânime de sua grandeza, o que até permitiu um exagero retórico do Gazeta de Notícias, que anunciou sua morte com a manchete: “Apagou-se o sol”.

Em 1914, Rui Barbosa escreveu uma conferência que deveria ter feito na cidade de Santos, sobre uma emenda no Orçamento que ampliaria os impostos para “ajustar o desequilíbrio das contas públicas”. O evento fora cancelado sem maiores justificativas. Restou apenas um manuscrito de 32 laudas, com o título A crise moral, apensado com um lacônico “importante conferência que deveria ter sido dada em Santos”.

Hoje em dia parece inacreditável, mas a emenda fora rejeitada pela Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados. Segundo o diagnóstico de Barbosa, “a difícil situação do país é fruto de um contínuo excesso de despesas realizadas a esmo, sem razão evidente de impreterível necessidade”. Ele ainda afirmou que “o mal das finanças está na despesa, sem atenção nem responsabilidade, infringindo as regras elementares da boa administração”. O Brasil, enfim, nunca perdeu o hábito de fazer contabilidades alternativas e, depois, convocar o cidadão para contribuir com os ajustes dos desequilíbrios das contas públicas.

Por isso, A crise moral tornou-se uma conferência perene: trata do desalento do povo em relação à classe política; das mentiras, da corrupção e também da “natureza absolutamente simulatória das eleições que privilegiavam as oligarquias”. O documento fala do fetiche nacional por cargos públicos, “dos eruditos de catálogo, dos oráculos e gurus do mundo”, além dos líderes autoproclamados que, incapazes de trocar uma lâmpada, “aguardam que um ato do poder público os levante da sua inutilidade para aderir como crustáceos a uma sinecura estatal”. Enfim, nesse “jubileu dos protegidos e inúteis, assistimos à entrega do país à inépcia e à imbecilidade”. Foi profético.

Depois de uma jornada de 32 laudas, Rui reclama do fato de querer-se “curar a crise econômica, financeira e administrativa, enquanto descuida-se da verdadeira crise: a do caráter, da consciência e do pudor, a crise moral, social, humana”. (…) A crise ainda aí está, com todos os elementos de uma decomposição social: a incapacidade e a roubalheira; a corrupção e a hipocrisia; a subserviência e a bajulação.

Sua obra completa é composta por inacreditáveis 137 tomos, “um dos maiores empreendimentos editoriais do mundo”, garante-nos o historiador Américo Lacombe, organizados a partir das regras burocraticamente estabelecidas pelo decreto-lei 3.668 de 1941, que estabelece, entre outras excentricidades, que “quando o exigir, o número ou extensão dos trabalhos, um volume poderá desdobrar-se em dois ou mais tomos”. Mas a tarefa de organizar a exagerada obra de nosso preclaro Rui foi facilitada pela sua também exagerada organização. Segundo a lenda, deixou definitivamente catalogado para a posteridade mais de 60 mil manuscritos — sem pular linha, garantiu-nos, com segurança, o inventariante da época. Legou-nos também, perfeitamente ordenadas, as infinitas cadernetas onde anotava todas as despesas pessoais.

Rui Barbosa falou e escreveu com versatilidade sobre educação, direito, finanças, relações internacionais, habeas corpus, mas, principalmente, sobre os infinitos e ininterruptos problemas brasileiros. “Foi um homem de ação que fez da palavra o seu instrumento”, afirma Wilson Martins, na sua História da Inteligência Brasileira. Teve sua importância histórica marcada como advogado, sendo o responsável pela sustentação oral do primeiro habeas corpus sobre matéria política a ser impetrado na era republicana. Em 1906 e 1907, ele participou da Conferência de Haia, sobre direito internacional, o que lhe rendeu o epíteto de “Águia de Haia“.

No entanto, jamais escreveu um ensaio científico ou desenvolveu alguma tese inovadora. Por isso foi alvo de muitas críticas, além de inspirar seus desafetos a tentarem descontruir a imagem do nosso magricelo e quase raquítico intelectual, acusando-o de falar muito e edificar pouco. José Câmara, no seu prefácio ao volume XXV das Obras Completas aponta para o “caráter fragmentário da sua produção intelectual”, alegando que “seu espírito trabalhava fundado mais na memória do que na reflexão e compilando mais do que selecionando”.

Porém, aquila non capit muscas, diz o provérbio latino. Quer seja, a águia não apanha moscas. Um homem nobre não perde tempo com insignificâncias. Sua obra literária se desenvolveu no meio das confusões políticas cotidianas, com grande parte se perdendo em meio a polêmicas, mas em geral respondendo de forma bastante relevante aos desafios da sua época. Os debates da vida pública deram-lhe a oportunidade de falar sobre uma quantidade quase infinita de assuntos. Ainda que não tenha lhe sobrado tempo para expor seus pensamentos de forma orgânica e coerente, eles jamais se tornaram antiquados.

É verdade que muita coisa mudou no Brasil desde os protestos de Rui Barbosa, mas os infinitos e ininterruptos problemas são os mesmos: o país continua entregue à inépcia, à corrupção e à hipocrisia, com um mar de lama a espalhar-se por todo o território nacional.

Cem anos depois da sua morte, a verborragia de Rui Barbosa continua ecoando neste país que, de fato, sempre escolhe privilegiar o populismo e a idolatria política.

 

Diogo Chiuso é autor de O que restou da Política, editora Noétika, 2022

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  1. Toda glória à memória de Ruy Barbosa, ilustre filho desta terra! Mas parar para ouvir o que ele disse ficará para futuras e melhores gerações, por agora estamos muito preocupados em chafurdar na merda.

  2. Imagino Ruy Barbosa vivo, vendo um descondenado na presidência, um STF mediocrizado com decisões que rasgam a constituição e um congresso repleto de malandros..

  3. Rui Barbosa é sempre um farol seguro para buscar e onde buscar a explicação clara de nossos dissabores nacionais. Para não dizer de outras coisas.

  4. Num país onde um ladrão "descondenado" anos depois do "trânsito em julgado" cumprir cadeia e virar presidente do galinheiro e da ditadura de nomeada da dita suprema côrte a estuprar a constituição e soltar chefões do tráfico se mudou grande Rui foi para pior .. para bem pior.

    1. DE TANTO VER TRIUNFAR AS NULIDADES O HOMEM TEM VERGONHA DE SER HONESTO ... frase lapidar do grande Rui Barbosa que cai como uma luva neste galinheiro sujo que chamam Braziu.

  5. Onde encontramos pessoas como Rui Barbosa na atualidade? Especialmente dentro do universo político? É muito sonho acreditar que ainda teremos a oportunidade de eleger um presidente inteligente como foi Rui Barbosa?

  6. Rui Barbosa foi, sem dúvida uma das maiores cabeças de nossa história recente. Gostaria muito de tê-lo tido como Presidente, coisa que, talvez não fosse de seu estilo...

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