Foto: Ricardo StuckertLula e Putin, no segundo mandato do petista: o presidente escolhe um lado no esboço de uma segunda guerra fria

Neutralidade que significa (objetivamente) alinhamento

As democracias liberais já entenderam que a visão de Lula é objetivamente pró-Putin. Rapidamente, ele está se desmoralizando aos olhos dos líderes desses países
03.03.23

Comecemos com uma pequena lição escolar de história. O Brasil entrou tardiamente na Segunda Guerra Mundial, ao lado dos aliados, após ceder à pressão das nações civilizadas para encerrar o período de neutralidade adotado pelo então presidente e protoditador Getúlio Vargas. Até 1937, o Brasil mantinha relações cordiais com a Alemanha, mesmo com todo o mundo democrático sabendo quem eram Hitler e Mussolini e conhecendo suas pretensões imperiais. Ainda assim, o país manteve a neutralidade. A situação só mudaria em 1942, quando o Brasil rompeu relações diplomáticas com o Eixo. A declaração de guerra contra a Alemanha e a Itália ocorreu no dia 31 de agosto de 1942.

Lula é uma espécie de Getúlio, que flertou com a Alemanha nazista, pretextando neutralidade, mas teve uma hora que não aguentou mais a pressão das democracias ocidentais e teve que mandar os nossos pracinhas para a Itália. Bem… por aí já se vê que a alegada tradição de neutralidade da política externa brasileira é uma farsa. O Brasil entrou na Segunda Guerra; ou seja, corretamente, não ficou neutro.

Agora, no caso da Ucrânia, em que Putin faz as vezes de Hitler, não se trata de guerra (quente) nenhuma. Segundo a Carta da ONU, defender um país agredido não configura alinhamento em um conflito. Mas Lula quis dar uma de esperto, dizendo que a tradição diplomática brasileira é pela neutralidade. Neutralidade que, até aqui, significou, objetivamente, alinhamento à Rússia ditatorial de Vladimir Putin.

Parece claro que, não sendo louco, Lula – tal como Getúlio – vai ter de mudar de posição em relação à guerra de Putin contra as democracias liberais. Isso não significará, porém, que ele mudou a forma de pensar. Continuará o mesmo militante da Guerra Gria, estatista, populista e contraliberal. O mesmo vale para a imensa maioria dos dirigentes e militantes do PT. Até os funcionários lulistas do Itamaraty conversam à boca pequena que existem territórios ucranianos que são russos e que, portanto, devem ser devolvidos ao ditador Putin em troca da “paz”. Não têm vergonha de repetir o argumento do Kremlin. Quem tenta passar pano são os intelectuais lulopetistas que escrevem em jornais, que gostariam de ser orientadores do PT, mas não são.

Todas as dezenas de democracias liberais já entenderam que a visão de Lula é objetivamente pró-Putin. EUA, Canadá, Barbados, Costa Rica, Chile e Uruguai já entenderam. As democracias da União Europeia também. Coreia, Japão, Taiwan, idem. Austrália e Nova Zelândia, ibidem. Só não o dizem por razões diplomáticas. Mas parece óbvio que o próprio Lula está se desmoralizando rapidamente aos olhos dos grandes líderes democráticos mundiais. O calcanhar de Aquiles dos populistas é sua política externa. Ao fazê-la, não conseguem esconder suas tendências iliberais, mesmo que disfarcem tudo, virando, como no caso do Brasil, garotos-propaganda do combate à fome e da proteção da Amazônia.

Dizer, como Lula (depois de muito pressionado pelas nações democráticas), que a invasão de Putin à Ucrânia foi “um erro histórico” é – este sim – um erro histórico. Não foi um erro num projeto de país soberano e sim uma ação acertada do ponto de vista do objetivo imperial da autocracia russa. “Cometi um ‘erro histórico’. Invadi sua casa e matei sua mulher e seus filhos.” Eis a posição de Lula sobre a invasão da Ucrânia pelo ditador Putin. Claro que, como foi dito, pressionado pelas grandes nações democráticas, o governo brasileiro já começa, lentamente, a ser obrigado a ajustar sua posição.

“Eu não quero entrar na guerra, eu quero acabar com a guerra.” Lula o disse na semana passada, em entrevista à CNN, para justificar por que não apoia a resistência ucraniana ao invasor Putin. Ora, se é assim, então é simples. Basta aumentar a pressão (e apoiar as sanções) para que os russos retirem suas tropas.

Mas as coisas não são tão simples para um governo populista. A extrema-direita e a esquerda populista, no plano internacional, iniciaram uma guerra contra Zelensky e a resistência ucraniana usando argumentos diferentes, mas ambos soprados pelos ideólogos do Kremlin. Convocaram até manifestações de rua em vários países, com o apoio de sindicatos e partidos de esquerda. É vergonhoso. É um sinal de que a Segunda Guerra Fria começou. 

Sim, o mundo já está numa segunda grande Guerra Fria movida pelas grandes autocracias contra as democracias liberais. A Ucrânia é um divisor de águas. Todos os populismos (de direita e de esquerda) estão se colocando ao lado das autocracias (inclusive o Brasil de Bolsonaro e Lula – numa perfeita simetria).

Há aqueles populismos de direita (como Hungria e Turquia) e de esquerda (como Venezuela e Nicarágua) que apoiam desavergonhadamente as autocracias. É há aqueles, de direita ou esquerda, que as apoiam disfarçadamente em nome da paz (uma ‘pax romana’). 

Entenda-se bem. Não é que os populismos estejam criando uma nova Guerra Fria. Mas seu alinhamento quase automático às autocracias são um sinal da formação de blocos – o que é o principal indicador de que já estamos numa Segunda Guerra Fria (que, por óbvio, não será igual à primeira, do período 1960-1990, mas nem por isso deixará de ser também uma Guerra Fria).

Ao mesmo tempo, é fácil constatar que os países que apoiam a resistência ucraniana contra a invasão da ditadura russa são, justamente, as democracias liberais. Estamos falando de Estados Unidos, Canadá, países europeus, Coreia do Sul, Japão e Austrália. Esses países têm enviado armas para a Ucrânia e e aplicado sanções contra a Rússia. Dois blocos estão em conformação, portanto. Essa é a má notícia.

É sempre desagradável dar más notícias. As pessoas gostam quando anunciamos que as coisas vão melhorar. Infelizmente, não vão, não tão cedo. O que mais temíamos já aconteceu. Uma parte do passado se voltou contra nós. E está em guerra contra a democracia liberal.

É por isso que observamos – da parte da direita e da esquerda – surtos de autoritarismo e totalitarismo. Foi assim que surgiram, aparentemente do nada, pessoas elogiando a ditadura Putin e até a ex-URSS, defendendo ordens autocráticas (e justificando comportamentos fascistas ou stalinistas). 

Alguns perseguem a retropia de uma nação religiosa patriarcal, outros querem a distopia de um Estado onipresente que nos levaria para o paraíso de uma sociedade sem Estado, no cenário pavoroso (o juízo e a palavra são de Hannah Arendt) de um mundo sem política. Com efeito, ela escreveu, por volta de 1950, na sua obra O que é política? (publicada postumamente): “O ideal socialista de uma condição final da Humanidade sem Estado — que, em Marx, significa sem política — não é, de maneira alguma, utópico: só é pavoroso.”

Antes do pavoroso, porém, vem o horroroso. Bem-vindos à antessala do mundo horroroso da segunda grande Guerra Fria mundial.

 

Augusto de Franco é escritor

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  1. Excelente artigo. Estão sendo formados dois blocos e nós, claro, vamos estar no lado errado, o lado das autocracias, o lado de Putin, Orban, Ortega, Maduro. Que tristeza...

  2. Impressionante como nisto Lula e Bolsonaro se parecem. Nunca pensei que fosse viver para ver esquerda e direita concordando sobre alguma coisa.

  3. O bolsopetismo é lamentável. Responsável por isto é nosso caduco regime presidencialista. Se povo pensasse, veria claramente que democracia decente é quase sempre parlamentarista, onde todas as outras instituições tendem a ser melhores. Aqui não é democracia, não tem candidaturas independentes de partidos, não tem judiciário independente, não tem legislativo que preste (aí a responsabilidade é do eleitor). "Cada povo tem o governo que merece"...

  4. Vergonha e criminosa a posição de neutralidade do Brasil nesta barbarie expansionista do império Russo. Putin adota o mesmo script de Hitler - Terceiro Reich - inclusive com a substituição da cruz suástica pelo “Z”. Espero que o fim físico deste assassino (Putin) e seus defensores seja breve.

  5. Lamentável o rumo que o mundo está tomando. Na minha vida já passei pelos sofrimentos da primeira Guerra Fria! Sobreviveremos à segunda?

  6. A política externa do PT, em apoio às autocracias mundiais, escancara a intriga dos populistas contra a democracia liberal.

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