Foto: Ivan Storti/Santos FCNeymar aos 19 anos, em 2011, durante jogo do Santos contra o Fluminense pelo Brasileirão, na Vila Belmiro

O homem é o cartão vermelho do homem

O surgimento da “Neymar feminina” será uma das consequências naturais do sucesso do futebol jogado por mulheres
18.08.23

A alemã Sophia Kleinherne marcou sua passagem pela Copa do Mundo de futebol feminino ao dizer que não conhece nenhuma “Neymar feminina, nenhuma jogadora que fique no chão dois ou três minutos”. Eu também não conheço. A zagueira, cuja seleção foi eliminada ainda na primeira fase do torneio, como o Brasil, disse que as mulheres conseguem inspirar com um “futebol honesto” e defendeu que isso seja mais valorizado. Concordo. Há, de fato, entre as jogadoras de futebol feminino uma camaradagem que não se vê mais no futebol profissional masculino. Mas é preciso aproveitar enquanto é tempo esse clima de esporte amador, porque, quando a coisa ficar séria de verdade, como se pretende, vai ter um monte de jogadora rolando pelo chão.

Afinal de contas, por que Neymar Jr. e outros jogadores de futebol simulam faltas e passam minutos eternos rolando no chão? A nova moda no Brasil, aliás, é simular o sofrimento de cotoveladas ou qualquer outra pancada no rosto, aproveitando-se da preocupação dos árbitros com a integridade física dos atletas e torcendo para forçar uma expulsão no time adversário. O homem é o cartão vermelho do homem, diria Thomas Hobbes. “Ambos os ditos estão certos — que o homem é um deus para o homem, e que o homem é lobo do homem”, escreveu o inglês na epistola dedicatória de seu Do Cidadão (Martins Fontes).

“O primeiro é verdade, se compararmos os cidadãos entre si; e o segundo, se cotejamos as cidades. Num, há alguma semelhança e analogia com a Divindade, através da Justiça e da Caridade, irmãs gêmeas da paz; no outro, porém, as pessoas de bem devem defender-se usando, como santuário, as duas filhas da guerra, a mentira e a violência — ou seja, para falar sem rodeios, recorrendo à rapina das feras”, segue o autor de Leviatã. Quer dizer, a mentira, no caso das simulações de falta, se torna imperativa mesmo para pessoas boas, desde que em situações de perigo.

Neymar se valeu tanto desse artifício que a eficiência da estratégia foi se reduzindo ao longo do tempo. Poucos árbitros entram em seu jogo atualmente, como acontece com outros jogadores, como Deyverson, para ficar no exemplo mais folclórico possível. Obviamente que mesmo o esporte profissional, no qual estão envolvidos bilhões de dólares, demanda algum cavalheirismo e honestidade, mas os limites para tanto já foram bem estabelecidos. Rodrigo Caio que o diga.

O zagueiro do Flamengo, que trava uma batalha contra as lesões ao longo de toda a carreira, virou um símbolo de honestidade — ou ingenuidade — em 2017. Em partida entre São Paulo e Corinthians pela semifinal do Campeonato Paulista, o zagueiro, que foi formado pelo tricolor do Morumbi, evitou que o atacante Jô levasse um cartão amarelo injusto e acabasse suspenso para o segundo jogo da decisão — o árbitro viu Jô dar um pisão no goleiro Renan Ribeiro e lhe aplicou a punição, que foi retirada após Rodrigo Caio alertá-lo de que, na verdade, foi ele que esbarrou no goleiro do São Paulo. Um ato nobre que nunca mais se repetiu na carreira do zagueiro.

Meses depois daquele lance, Jô, que havia louvado a atitude do adversário após o jogo — “essa situação nos traz responsabilidade de fazer igual se acontecer o contrário”, declarou à época —, marcou um gol de mão contra o Vasco e saiu celebrando como se fora normal. O homem é o cartão vermelho do homem. Hobbes diz que os homens têm o hábito de censurar essa conduta uns nos outros, “por um costume, que lhes é congênito, de mirarem suas próprias ações nas pessoas dos demais — de modo que, num espelho, todas as coisas que estão do lado esquerdo aparecem à direita, e o que estava no lado direito parece figurar à esquerda”.

O inglês acrescenta que “o direito natural de conservação, que nos vem a todos dos incontestáveis ditames da necessidade, não admite que isso seja um vício, ainda que devamos confessar seja uma infelicidade”. Louvemos e apreciemos a honestidade das jogadoras de futebol, que disputam neste fim de semana a final da Copa do Mundo, mas que ninguém se engane: uma mulher pode ser tão trapaceira quanto um homem. Basta que as condições se estabeleçam. O surgimento da “Neymar feminina” será uma das consequências naturais do sucesso do futebol jogado por mulheres. E viva a igualdade.

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  1. Quem assiste futebol feminino com frequência sabe que a coisa está mudando rapidamente. Por outro lado dificilmente surgirá uma "Neymar" com o futebol mágico do garoto Ney.

  2. Rodrigo Caio, parabéns por sua honestidade! Além de íntegro, transformou tal fato em exemplo digno de ser enaltecido por todos os brasileiros, jogadores e clubes de futebol. A CBF deveria fazê-lo, como as mulheres já fazem por virtude de caráter. Aproveitando, 2º cartão amarelo para Lula, o primeiro por dizer que as narrativas contra N. Maduro são falsas e o 2º por reatar relações diplomáticas com o carniceiro narcotraficante venezuelano. Portanto, cartão vermelho para o vermelho Lula!

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