Foto: Reprodução/Prefeitura da SerraNegociações no programa Desenrola: quase um terço das famílias brasileiras é devedora inadimplente

O brasileiro está com a corda no pescoço

Com renda estagnada, Brasil tem recorde de famílias que não conseguem pagar suas dívidas, o que também dificulta o crescimento da economia
18.08.23

André Mattos de Souza, 43 anos, natural de Brasília, é retrato de um Brasil que não consegue pagar suas contas. O analista de sistemas hoje tem uma renda relativamente boa para os padrões nacionais: em torno de R$ 7 mil ao mês. Mas ela já foi de R$ 10 mil, há dois anos. Com a redução de aproximadamente um terço dos seus vencimentos, André foi obrigado a fazer cortes nos gastos.  Alguns eram supérfluos, é bem verdade. Academia e jantares. Outros, nem tanto, como plano de saúde. Ele também se viu obrigado a vender o carro, um HB20 ano 2016, mas, mesmo assim, ainda tem problemas para fechar o mês. “É um malabarismo diário. Estamos fazendo de tudo, como ir a mercado mais baratos a comprar produtos menos conhecidos. Essa é a nossa nova realidade”, diz Souza.

Segundo dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, divulgada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o Brasil tem um recorde de famílias endividadas. Em julho, a  proporção chegou a 78,1%. O mais preocupante, no entanto, é que 29,6% das famílias são inadimplentes. Ou seja, quase um terço dos lares brasileiros perdeu  a capacidade de honrar suas dívidas.

O governo federal busca combater os sintomas agudos dessa doença. Em julho, lançou o programa Desenrola, para permitir a renegociação de dívidas e a retirada de nomes dos cadastros de maus pagadores. Inicialmente, o programa foi liberado para pessoas com renda entre R$ 2,6 mil e R$ 20 mil. Mais de R$ 8 bilhões já foram renegociados e 5 milhões de pessoas limparam seus nomes.

Neste momento, dá-se um embate a respeito dos juros do cartão de crédito, hoje amplamente difundido entre todos os grupos de renda no Brasil. Quem não consegue pagar uma fatura tem duas opções: parcelar ou entrar no rotativo. Os juros no primeiro caso são altíssimos: cerca de 9% ao mês, ou 181% ao ano. No segundo caso, os juros são estratosféricos: 437,25% ao ano, na medição de junho. É verdade que depois de dois meses os bancos são obrigados a tirar o cliente do rotativo e transferi-lo para uma modalidade com taxas mais baixas. Mas, para quem está desempregado ou tem a renda comprometida com despesas básicas, mesmo a passagem rápida pelo rotativo equivale a cair em um buraco negro de endividamento, de onde escapar é quase impossível.

Desde o início do terceiro mandato de Lula, o ministro da Fazenda Fernando Haddad tenta negociar uma redução dos juros do rotativo com os bancos. No começo do mês, ele fez um acordo com Isaac Sidney, presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), e montou uma mesa de negociação. “Não pode continuar como está. É um problema e temos prazo para resolver”, salientou o ministro nesta semana.

Há, no entanto, duas pedras no meio do caminho. Primeiro, a principal determinante dos juros é, justamente… a inadimplência nas faturas de cartão de crédito. Os dois fenômenos se retroalimentam. Em segundo lugar vêm as compras parceladas no cartão. Nessas transações, os bancos assumem os riscos das lojas que vendem uma peça de roupa ou uma televisão em 6 ou 10 prestações. Compensam essa operação elevando os juros do rotativo. É o que se chama de subsídio cruzado: o serviço que cobra juros estratosféricos possibilita a existência de um tipo de venda com juros menores (quem anuncia parcelamento “sem juros no cartão” já os embutiu no preço, como bem sabe o leitor de Crusoé). Por isso os bancos afirmam que o atalho para derrubar aqueles 437,25% ao ano seria extinguir as compras parceladas pelo cartão de crédito. Há cerca de dez dias o presidente do Banco Central Roberto Campos Neto revelou que havia conversas nessa direção.

Nesse ponto, contudo, é o comércio que pega em armas: esse movimento causaria um abalo catastrófico no consumo, diz o setor. Diversas associações do varejo e atividades afins se mobilizaram nos últimos dias para se contrapor aos bancos, inclusive com anúncios na imprensa e na internet. “Estão querendo enrolar você aleijando o parcelado!”, afirma um desses anúncios, patrocinado pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes. Eles afirmam que outros fatores, como a falta de competição e os lucros do setor bancário, são a causa dos juros do rotativo. Fernando Haddad já se deu conta que o custo político de mexer no parcelado é proibitivo. “O sistema padrão de compra brasileiro hoje é o parcelamento”, disse ele na última segunda-feira, 14. Também na Câmara e no Senado há resistência contra qualquer engenharia financeira que atinja o parcelamento. Segundo três líderes partidários ouvidos  por Crusoé, uma  medida nessa direção poderia ser alvo de um decreto legislativo.

Do lado da Febraban, a maior preocupação é evitar um tabelamento de juros como o que ocorreu com o cheque especial, que desde janeiro de 2020 tem taxa anual máxima de 151,8% , ou 8% ao mês. Os bancos pretendem estabelecer alguma espécie de autoregulação, fugindo a imposições do  governo ou do Congresso. O prazo para que se chegue a uma solução negociada é de 90 dias.

O fato, porém, é que tanto o Desenrola quanto os estudos sobre os juros do cartão de crédito são soluções paliativas. Elas não atacam as causas da doença que leva ao endividamento e à inadimplência das famílias: o baixo crescimento econômico e a estagnação da renda da população.

Desde 2013, o Brasil não consegue crescer mais do que 3% ao ano. A única exceção foi 2021, primeiro ano pós-Covid, quando o PIB cresceu 5%. Mas isso  mal foi suficiente para recuperar o tombo do ano anterior: – 3,9%. Nesse ínterim, também os anos de 2015 e 2016 registraram redução do PIB: – 3,5% e – 3,3%, respectivamente.

Enquanto isso, o rendimento médio mensal real domiciliar per capita no Brasil também sofreu uma dilapidação, segundo a PNAD Contínua do IBGE. Em 2021, o índice foi de R$ R$ 1.484, o segundo menor valor da série histórica, iniciada em 2012, quando esse rendimento era o equivalente a R$ 1.417. No ano passado, a cifra chegou a R$ R$ 1.586. A pequena recuperação foi puxada pelo Auxílio Brasil, programa social de renda criado no governo Jair Bolsonaro.

A mesma pesquisa permite olhar o fenômeno sob um outro prisma, a renda média do trabalhador, em vez da renda domiciliar per capita. De 2020 para 2021, a renda média do trabalhador caiu 7,9%. Foi de R$ 2.949 para R$ 2.743. A tendência continuou em 2022, quando o valor desceu a R$ 2.715. Uma análise divulgada no começo de junho pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra uma recupeção de 7,4% no primeiro trimestre de 2023, na comparação com o mesmo período do ano passado. A renda média chegou a R$ 2.900, muito próximo aos R$ 2.910 observados em dezembro de 2019, período imediatamente anterior à pandemia de covid-19.

A pandemia, obviamente, desempenhou um papel no endividamento da população. Mas não se pode atribuir o problema exclusivamente a ela. “O Brasil  precisa escapar desse patamar de crescimento de 2% ao ano. Só isso vai proporcionar uma melhora sustentável na renda do cidadão. Auxílio emergencial, Desenrola e políticas semelhantes ajudam, mas têm efeito limitado”, diz o economista e ex-senador José Aníbal.

Segundo o advogado tributarista Leonardo Roesler é imprescindível adotar uma abordagem que percorra tanto os aspectos quantitativos quanto os qualitativos do comprometimento das finanças das famílias brasileiras. “É imperioso que haja uma conjugação de medidas que atendam não somente à diminuição da dívida, mas também à promoção do crescimento econômico sustentável, à geração de empregos e ao fomento da atividade produtiva, garantindo, assim, um cenário propício ao desenvolvimento integral do país”, afirma.

A educadora financeira Silvia Machado afirma que a falta de informações sobre como lidar com dinheiro é um problema que deveria ser abordado de maneira mais sistemática no Brasil. “Isso afeta a população brasileira como um todo, inclusive nas classes mais altas, que podem até ter recursos, mas muitas vezes não sabem como para geri-los”, frisa. Ela é categórica ao afirmar que não há solução que passe apenas pelo controle do orçamento ou a renegociação de dívidas. “A cada nova pesquisa, o número de endividados aumenta e não me surpreendo. Há muita gente sem emprego ou com trabalhos de baixa remuneração. A renda é comprometida com coisas básicas, como alimentação, e qualquer gasto extra já empurra as pessoas para o vermelho”, diz.

O estudante de enfermagem Jeydson Hadjon Bragança, de 23 anos, morador do Gama, cidade distante 30 km do centro de Brasília, se enrolou com dívidas no cartão de crédito em 2020, depois de perder o emprego. “Eu estava servindo ao Exército nesse período e tinha um cartão de crédito, que ficou com minha mãe. Ela estourou o limite e, quando vi, a dívida tinha explodido”, conta. “A dívida mexe com o meu psicológico. Eu já tentei equacionar, mas sempre surge um imprevisto.” O débito de Jeydson é de pouco mais de R$ 2 mil.

A guerra contra os juros é mesmo um dos motes deste início do governo Lula. A batalha do rotativo do cartão de crédito vem se somar àquela que já estava em curso desde antes da posse, contra a taxa Selic estabelecida pelo Banco Central. Nos dois casos, verdades muito simples — juros baixos são melhores para a economia e para devedores — são esgrimidas como se reduções drásticas dos juros não tivessem contrapontos negativos como o risco do aumento da inflação ou a inviabilização de práticas como as compras parceladas no cartão de crédito. Lula e o PT agem como se a realidade subjacente não fosse complexa e só houvesse a sabotagem de adversários contra os propósitos do governo. Neste mês, a Selic começou a cair, abrindo boas perspectivas para a economia. Mas o alto endividamento dos brasileiros torna mais difícil que Lula 3 consiga repetir rapidamente o ciclo de Lula 1, que fez do fomento ao consumo um dos principais motores do crescimento econômico. Por isso também no Planalto o fantasma da inadimplência tira o sono de muita gente.

 

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. EDUCAÇÃO é a saída para o Brasil, prioridade zero p/ fome, 1 p/ saúde e 2 para Educação. Acabar com os privilégios de todos os funcionários públicos. Acabar com o aparelhamento e os cabides de emprego q Lula impôs aos brasileiros. Acabar com todas as estatais. Extrema racionalidade nos gastos públicos. Acabar com os Fundos Partidários, acabar com gastos secretos Lula e o PT, junto com seus aliados políticos são perdulários. O Brasil não pode funcionar com esse bando de ignorantes incompetentes.

  2. Pra variar o culpado da febre é o termômetro e com isso nunca vamos sair da insignificância de um país mais pra menos do que pra mais. Os palpiteiros tem as suas rezas bravas, mas a verdade é que a única saída de verdade é o aumento sustentável da renda e isso é impossível na realidade brasileira. Estamos condenados a ser um país de segunda categoria.

  3. Esses juros pornográficos são roubo puro. Simples assim. Se o banco, para se resguardar do risco de calote, tem que cobrar um valor tal pelo crédito, ele simplesmente não deveria dar crédito para esse pessoa. Seria o melhor para ambos. Banco aqui opera em cartel e seu lobby previne flexibilização da legislação para facilitar a criação de novos bancos e, potencialmente, aliviar essas taxas de juros

  4. Diante de um quadro desse, empobrecimento da maior parte da população, não há espaço para aumento de impostos, como o governo está tentando fazer através do dito “arcabouço fiscal”. A saída imediata para tal situação de pobreza é reduzir impostos, como recentemente fez Portugal diante da crise gerada pelo aumento da taxa de juros pelo BCE.

    1. Alguém sabe quanto o desgoverno ladrão arrecadará com o aumento de combustiveis? B i l h õ e s e idiotas sequer percebem .... estamos com a corda no pescoço e "uzovo" na guilhotina.

  5. Aí baixam os juros, o comercioy se aquece com os parcelamentos, os preços sobem, a inflação vai junto, os juros sobem para conter a inflação, a inadimplência sobe, vem a recessão... É a receita do desastre...

  6. É uma equação básica, se se gasta mais do que se ganha haverá dívida crescente. E no caso não estou falando das famílias, mas de um Estado que cada vez mais transfere renda da sociedade para a sua casta de várias formas: impostos massacrastes, juros criminosos, salários indignos, monopólios, latifúndios improdutivos... Não há incentivos para mudar esse estado de coisas. Só mesmo no longo prazo com mais educação, cidadania e consciência social.

  7. Salários baixos para remunerar quem produz, impostos altos para remunerar um estado inchado, ineficiente e corrupto. Sem mudar essa realidade, não sairemos do lamaçal.

    1. Pois é Odete6. Remover das urnas esses políticos seria a solução. Eu votei em Deltan pensando nisso, mas o Sistema deu um jeitinho de tirá-lo do jogo. É muito desanimador.

    2. Perfeito. É precisamente isso. Precisamos remover nas urnas esses malditos ladro-predadores do BRASIL, covardes antropófagos do POVO BRASILEIRO.

Mais notícias
Assine agora
TOPO