Foto: Reprodução, Acervo Walter Hugo KhouriMarcelo Ribeiro e Xuxa em cena de Amor Estranho Amor, de Walter Hugo Khouri: um cinema original - Foto: Reprodução

O cinema brasileiro que poderia ter sido e não foi

Filmes de Walter Hugo Khouri e Alberto Cavalcanti têm, até hoje, sua recepção afetada pelos preconceitos do Cinema Novo e da esquerda
18.08.23

O país estava à beira da Revolução de 1930. Um político paulista (Tarcísio Meira) mantinha um bordel para si próprio e para influenciar políticos, com o objetivo de se tornar presidente da República. Lá mora a sua preferida, Anna (Vera Fischer), que sonha em casar-se com ele, mas enfrenta um empecilho: a chegada do filho de 12 anos, um menino que passa a ser desejado pelas outras prostitutas da casa, incluindo Tamara (Xuxa), que ainda por cima ameaça tomar o seu lugar de preferida, por ser mais jovem e recém-chegada de Santa Catarina.

Esse é o enredo de Amor Estranho Amor, filme de 1982 que não raro é referido nas redes sociais como “o filme pornô da Xuxa”. É uma injustiça muito grande; não se trata nem de longe de um filme pornô. O filme tem um elenco de estrelas: Tarcísio Meira, Mauro Mendonça, Vera Fischer e Xuxa, que na época tinha 17 anos — antes se tornar a Rainha dos Baixinhos. A ironia do destino causou muitos problemas para Xuxa, que entre 1991 e 2018 conseguiu vetar a comercialização do filme, até que desistiu de pagar pelos direitos. A obra foi exibido pela primeira vez na TV em 2021, no Canal Brasil.

Amor Estranho Amor é obra de um diretor incontornável do cinema brasileiro, Walter Hugo Khouri, cujos filmes estão sendo exibidos em retrospectiva na Cinemateca Brasileira até 20 de agosto. Walter Hugo Khouri nasceu em 1929 em São Paulo, no bairro de Vila Mariana — onde hoje fica a Cinemateca Brasileira —, e morreu em 2003 também em São Paulo, cidade que retratou em vários dos seus 26 filmes, feitos entre 1950 e 1998.

Uma série de incompreensões foi se acumulando sobre o cineasta. Ele foi chamado de direitista, acusavam sua obra cinematográfica de ser alienada. Os motivos: não fazer um cinema engajado (à esquerda) e nos moldes do Cinema Novo e também não militar na esquerda.

A obra de Khouri também foi acusada de não ser suficientemente brasileira, de ser um cinema do tipo de Bergman ou Antonioni. Até o chamavam de o “Bergman do Vale do Anhangabaú”. Em entrevista, ele explicou o motivo: ter sido um dos primeiros a escrever sobre os filmes de Ingmar Bergman no Brasil.

Na verdade, a obra de Khouri não é menos brasileira que a de um cineasta do Cinema Novo. A identidade brasileira não é uma camisa de força, que exige temas ou abordagens específicas. O que faz a força de uma cultura é a abrangência de perspectivas possíveis.

Amor Estranho Amor, por exemplo, é um dos filmes mais bem situados historicamente do cinema brasileiro, num momento-chave do fim da República Velha ­— a atmosfera da cidade de São Paulo do final dos anos 1920 está ali representada como em nenhum outro filme.

É possível ver semelhanças entre filmes de Khouri e Bergman, Antonioni, Hitchcock — o filme Estranho Encontro, de 1958, tem de fato semelhanças com a linguagem do diretor inglês —, e especialmente com o cineasta francês Louis Malle, pela temática sexual (inclusive em se tratando de tabus, como incesto). Suas obras, porém, são profundamente autorais. O toque do mestre está em cada plano, em cada trilha sonora.

Não é à toa que Walter Hugo Khouri começou no cinema nos estúdios da Vera Cruz. Ele enviou um roteiro a Alberto Cavalcanti — mestre de três cinematografias, inglesa, francesa e brasileira, e criador da companhia produtora de filmes — e, apesar de não conseguir filmá-lo, terminou conseguindo trabalhar na empresa. Em 1968, ele chegou a assumir com o irmão William a Companhia Vera Cruz, onde já havia filmado Estranho Encontro.

Alberto Cavalcanti é, na minha opinião, o cineasta cuja obra está mais próxima da de Khouri. Eram cineastas autorais que, ao mesmo tempo, tiveram importantes sucessos comerciais; os dois passaram pela Vera Cruz; e os dois foram criticados por Glauber Rocha e os cineastas do Cinema Novo. E a recepção da obra dos dois foi muito afetada por isso.

Infelizmente no Brasil criou-se uma cultura oficial em que todo artista precisa ser engajado, tratar da pobreza sob o ponto de vista da luta de classes, e quem se opõe a isso é deixado à margem, mesmo sendo de esquerda, como Alberto Cavalcanti ou como José Geraldo Vieira na literatura. Isso vigora até hoje.

A retrospectiva na Cinemateca trouxe filmes inéditos, telecinados especialmente para essa exibição. Porém, os filmes de Khouri ainda não estão no streaming e não são estudados como deveriam na academia — muitos estudantes de cinema nem mesmo sabem que sua obra existe. Apesar da grandeza da obra de Walter Hugo Khouri, ela não tem influenciado as novas gerações e gerado os frutos que deveria. O mesmo se pode dizer de Alberto Cavalcanti.

 

Josias Teófilo é cineasta, jornalista e escritor

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  1. Nossa Teófilo, enquanto estava lendo o texto começou a me vir uma frase que representasse aquilo que também penso, E , eis que em seguida vi a frase sua em negrito. Concordo plenamente. No Brasil para fazer arte e ser valorizado tem que militar para a esquerda. Que pena ter que engolir essa classe artística, que se diz criativa, mas é tão bitolada. Não são todos, mas a maioria, com certeza.

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