Ozonioterapia, golpe de 2016 e outras lorotas cotidianas
A medição de temperatura na entrada de lojas, supermercados e shopping centers incorporou-se à paisagem pandêmica. O leitor deve lembrar desse profissional surgido em 2020: o funcionário que ficava postado na entrada do estabelecimento com um termômetro digital infravermelho, para barrar quem tivesse febre.
De início, a medição era feita na testa. Mas então espalhou-se pela internet o boato de que o infravermelho causava câncer na glândula pituitária. Também se falava que a luzinha do termômetro poderia cegar a pessoa examinada, se por caso incidisse sobre seus olhos. Essas afirmações eram desprovidas de fundamento, e as diligentes agências de checagem publicaram desmentidos. Não adiantou: a temperatura dos clientes passou a ser tomada no pulso.
Essa concessão à irracionalidade teve consequência nula sobre as taxas de transmissão, mas é uma demonstração eloquente do poder da mentira. Estávamos em um período no qual todo o dia a imprensa invocava a Ciência, com maiúscula, como uma divindade infalível em cujo altar deveríamos fazer sacrifícios. Mas o Zé Ruela e a Mãe do Badanha foram ao Facebook dizer que luzinha vermelha mata, e todos acreditaram.
Agora, a liberação da ozonioterapia veio avacalhar de vez o culto à deusa iluminista. Porque a lei foi sancionada por Lula, o homem-ideia, vemos muita gente bem informada minimizando o alcance da medida: é só para usos limitados etc. Nelson Teich, o mais qualificado (e por isso mais breve) ministro da Saúde do governo Bolsonaro, publicou na rede outrora conhecida como Twitter uma crítica muito sensata à liberação de um tratamento ainda experimental e sem eficácia comprovada. Ele diz que é ilusório imaginar que, uma vez liberada, a ozonioterapia será utilizada só nos termos da lei:
“Quando um gestor em saúde libera e recomenda uma tecnologia, ele precisa projetar não só os benefícios e riscos com o uso recomendado e adequado do produto, mas também os problemas que vão acontecer com o uso indiscriminado e inadequado.”
Nos comentários à publicação, não se vê ninguém discutindo tecnicamente os argumentos de Teich. Muita gente foi lá atacar o médico porque serviu ao “genocida”.
A modalidade de mentira que resolvemos designar com um anglicismo é filhote da guerra cultural. Para quem entende o mundo pela bitola estreita da oposição direita versus esquerda, ciência será tudo aquilo que seu líder ou partido disser que é ciência.
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O UOL publicou na semana passada um levantamento sobre os propagadores de fake news no Brasil. A reportagem escrutinou o relatório da CPI da Covid e sentenças do STF e do TSE para identificar os citados e punidos pela prática. Ao todo, os “disseminadores de desinformação” (expressão da reportagem) são 314 — 270 pessoas físicas e 44 pessoas jurídicas e órgãos do governo. Dada a longa duração do inabarcável inquérito das fake news no STF, eu até esperava um número maior.
Desses 314, 70 são políticos — aproximadamente um em cada cinco. E, desses políticos, 49% são do PL, o partido que Valdemar Costa Neto emprestou para Jair Bolsonaro. Considerado o negacionismo sanitário dos bolsonaristas, a proporção não chega a surpreender.
Foi um belo esforço jornalístico, mas eu me pergunto sobre o que ele de fato revela. Os casos que chegam até as instâncias superiores do Judiciário ou até uma CPI são, em tese, os mais importantes e graves, sobretudo quando tratam do emprego da máquina pública na disseminação de mentiras e na difamação de adversários do governo de turno. Mas representam que fração do lixo que circula pelas redes e por grupos de mensagens? E, para complicar, alguns dos casos disciplinados pelo TSE são distorções capciosas dos fatos que os políticos já empregavam bem antes do advento das redes sociais — vale dizer, são mentiras, mas não se enquadram bem na categoria pós-zuckerberguiana das fake news.
Um exemplo citado pelo UOL: Lula foi obrigado a tirar do ar a postagem na qual afirmava que, se reeleito, Bolsonaro reduziria o salário mínimo. Nunca houve declaração do governo nesse sentido; Paulo Guedes chegou a aventar a desindexação do salário mínimo, mas voltou atrás. O TSE cumpriu seu papel ao mandar que Lula retirasse a informação falsa. Mas, na escala das mentiras petistas, esta ainda fica bem atrás da famosa propaganda eleitoral que pintava Marina Silva, atual ministra do Meio Ambiente, como a amiga dos banqueiros que tiraria comida do prato dos pobres.
A mais grave mentira institucional do partido que hoje ocupa o Planalto nem sequer entrou no radar punitivo do STF e do TSE. Falo do “golpe de 2016”. O presidente da República tem reiterado em discursos oficiais e falas improvisadas que Dilma Rousseff foi derrubada por um golpe. Tais declarações configuram um ataque direto ao Congresso, que conduziu o processo constitucional do impeachment, e ao STF, pois as sessões do Senado foram presididas pelo então presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski.
Mas Lula, dizem, está restaurando a democracia.
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Como uma lorota sobre raios cancerígenos se dissemina e ganha credibilidade? Não sei se existe método de pesquisa capaz de traçar o caminho tortuoso das fake news até a aceitação por largos contingentes de cidadãos.
Desconfio que ainda entendemos as fake news por um modelo antigo, que pressupõe um emissor mal-intencionado e um receptor crédulo. No entanto, o tiozão do pavê que comenta e compartilha memes sobre urnas fraudadas e tramoias globalistas para esconder a eficiência do ozônio retal no combate à Covid também pode ser um “produtor de conteúdo”. E sua desconfiança em relação ao “sistema” não é qualitativamente diferente da crença petista em uma grande conspirata da direita que conduziu ao governo Temer e à eleição de Bolsonaro.
É talvez um erro acreditar que o eleitor vota em candidatos populistas porque é enganado pelas notícias falsas. É mais provável que ele acredite em notícias falsas porque quer votar no candidato populista.
Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor
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Os comentários sobre a Ozonioterapia são tão injustos e parciais quanto as fake news exemplificadas. Pelo visto o autor nunca utilizou essa terapia para tratamento; do contrário, dificilmente se sentiria à vontade para fazer tais comentários e comparações. É muito temerário lançar tais afirmações sem conhecimento de causa; seria como eu afirmar que o autor está a serviço da indústria farmacêutica! Como fazê-lo, se não tenho provas disso...?
O Descondenado mente e constrói narrativas para engabelar os incautos.
A última resume muito bem o que um eleitor ignorante faz. Acredita no seu populista de estimação. E pensar que tem tanta gente que conheço e que pareciam ter discernimento, opinião e conhecimento para não cair na lábia desses políticos. Mesmo com formação no ensino superior!!
Ozônio o rabo do Lula .. no meu não !!!
Muito boa análise. A propagação de falsidades em larga escala é um problema novo, que nem tão cedo vamos chegar a uma conclusão.
Para uma parcela bem importante da população esta questão de esquerda/direita tornou-se questão de fé e as lorotas são cultivadas e disseminadas para esta espécie de religião, não há racionalidade alguma, ou muito pouca.
Toda essa laia mente conforme lhes convém.
Parabéns Crusoé pelo nível dos colunistas
Muito interessante seu raciocínio, acho que se aplica a muitos conhecidos, desde aqueles que concordam que houve golpe, quanto aos que dizem que as denúncias as joias & companhia servem apenas para o Lula desviar a atenção do péssimo governo que está fazendo.
Excelente!