Foto: Pedro França - 26.ago.2016/Agência SenadoRicardo Lewandowski, então presidente do STF, no Senado em 2016, durante o julgamento do impeachment de Dilma

Ozonioterapia, golpe de 2016 e outras lorotas cotidianas

Nossa compreensão das fake news pressupõe um mundo em que há enganadores e enganados. E se estivermos todos nos enganando?
18.08.23

A medição de temperatura na entrada de lojas, supermercados e shopping centers incorporou-se à paisagem pandêmica. O leitor deve lembrar desse profissional surgido em 2020: o funcionário que ficava postado na entrada do estabelecimento com um termômetro digital infravermelho, para barrar quem tivesse febre.

De início, a medição era feita na testa. Mas então espalhou-se pela internet o boato de que o infravermelho causava câncer na glândula pituitária. Também se falava que a luzinha do termômetro poderia cegar a pessoa examinada, se por caso incidisse sobre seus olhos. Essas afirmações eram desprovidas de fundamento, e as diligentes agências de checagem publicaram desmentidos. Não adiantou: a temperatura dos clientes passou a ser tomada no pulso.

Essa concessão à irracionalidade teve consequência nula sobre as taxas de transmissão, mas é uma demonstração eloquente do poder da mentira. Estávamos em um período no qual todo o dia a imprensa invocava a Ciência, com maiúscula, como uma divindade infalível em cujo altar deveríamos fazer sacrifícios. Mas o Zé Ruela e a Mãe do Badanha foram ao Facebook dizer que luzinha vermelha mata, e todos acreditaram.

Agora, a liberação da ozonioterapia veio avacalhar de vez o culto à deusa iluminista. Porque a lei foi sancionada por Lula, o homem-ideia, vemos muita gente bem informada minimizando o alcance da medida: é só para usos limitados etc. Nelson Teich, o mais qualificado (e por isso mais breve) ministro da Saúde do governo Bolsonaro, publicou na rede outrora conhecida como Twitter uma crítica muito sensata à liberação de um tratamento ainda experimental e sem eficácia comprovada. Ele diz que é ilusório imaginar que, uma vez liberada, a ozonioterapia será utilizada só nos termos da lei:

“Quando um gestor em saúde libera e recomenda uma tecnologia, ele precisa projetar não só os benefícios e riscos com o uso recomendado e adequado do produto, mas também os problemas que vão acontecer com o uso indiscriminado e inadequado.”

Nos comentários à publicação, não se vê ninguém discutindo tecnicamente os argumentos de Teich. Muita gente foi lá atacar o médico porque serviu ao “genocida”.

A modalidade de mentira que resolvemos designar com um anglicismo é filhote da guerra cultural. Para quem entende o mundo pela bitola estreita da oposição direita versus esquerda, ciência será tudo aquilo que seu líder ou partido disser que é ciência.

***

O UOL publicou na semana passada um levantamento sobre os propagadores de fake news no Brasil. A reportagem escrutinou o relatório da CPI da Covid e sentenças do STF e do TSE para identificar os citados e punidos pela prática. Ao todo, os “disseminadores de desinformação” (expressão da reportagem) são 314 — 270 pessoas físicas e 44 pessoas jurídicas e órgãos do governo. Dada a longa duração do inabarcável inquérito das fake news no STF, eu até esperava um número maior.

Desses 314, 70 são políticos — aproximadamente um em cada cinco. E, desses políticos, 49% são do PL, o partido que Valdemar Costa Neto emprestou para Jair Bolsonaro. Considerado o negacionismo sanitário dos bolsonaristas, a proporção não chega a surpreender.

Foi um belo esforço jornalístico, mas eu me pergunto sobre o que ele de fato revela. Os casos que chegam até as instâncias superiores do Judiciário ou até uma CPI são, em tese, os mais importantes e graves, sobretudo quando tratam do emprego da máquina pública na disseminação de mentiras e na difamação de adversários do governo de turno. Mas representam que fração do lixo que circula pelas redes e por grupos de mensagens? E, para complicar, alguns dos casos disciplinados pelo TSE são distorções capciosas dos fatos que os políticos já empregavam bem antes do advento das redes sociais — vale dizer, são mentiras, mas não se enquadram bem na categoria pós-zuckerberguiana das fake news.

Um exemplo citado pelo UOL: Lula foi obrigado a tirar do ar a postagem na qual afirmava que, se reeleito, Bolsonaro reduziria o salário mínimo. Nunca houve declaração do governo nesse sentido; Paulo Guedes chegou a aventar a desindexação do salário mínimo, mas voltou atrás. O TSE cumpriu seu papel ao mandar que Lula retirasse a informação falsa. Mas, na escala das mentiras petistas, esta ainda fica bem atrás da famosa propaganda eleitoral que pintava Marina Silva, atual ministra do Meio Ambiente, como a amiga dos banqueiros que tiraria comida do prato dos pobres.

A mais grave mentira institucional do partido que hoje ocupa o Planalto nem sequer entrou no radar punitivo do STF e do TSE. Falo do “golpe de 2016”. O presidente da República tem reiterado em discursos oficiais e falas improvisadas que Dilma Rousseff foi derrubada por um golpe. Tais declarações configuram um ataque direto ao Congresso, que conduziu o processo constitucional do impeachment, e ao STF, pois as sessões do Senado foram presididas pelo então presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski.

Mas Lula, dizem, está restaurando a democracia.

***

Como uma lorota sobre raios cancerígenos se dissemina e ganha credibilidade? Não sei se existe método de pesquisa capaz de traçar o caminho tortuoso das fake news até a aceitação por largos contingentes de cidadãos.

Desconfio que ainda entendemos as fake news por um modelo antigo, que pressupõe um emissor mal-intencionado e um receptor crédulo. No entanto, o tiozão do pavê que comenta e compartilha memes sobre urnas fraudadas e tramoias globalistas para esconder a eficiência do ozônio retal no combate à Covid também pode ser um “produtor de conteúdo”. E sua desconfiança em relação ao “sistema” não é qualitativamente diferente da crença petista em uma grande conspirata da direita que conduziu ao governo Temer e à eleição de Bolsonaro.

É talvez um erro acreditar que o eleitor vota em candidatos populistas porque é enganado pelas notícias falsas. É mais provável que ele acredite em notícias falsas porque quer votar no candidato populista.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Os comentários sobre a Ozonioterapia são tão injustos e parciais quanto as fake news exemplificadas. Pelo visto o autor nunca utilizou essa terapia para tratamento; do contrário, dificilmente se sentiria à vontade para fazer tais comentários e comparações. É muito temerário lançar tais afirmações sem conhecimento de causa; seria como eu afirmar que o autor está a serviço da indústria farmacêutica! Como fazê-lo, se não tenho provas disso...?

  2. A última resume muito bem o que um eleitor ignorante faz. Acredita no seu populista de estimação. E pensar que tem tanta gente que conheço e que pareciam ter discernimento, opinião e conhecimento para não cair na lábia desses políticos. Mesmo com formação no ensino superior!!

  3. Muito boa análise. A propagação de falsidades em larga escala é um problema novo, que nem tão cedo vamos chegar a uma conclusão.

  4. Para uma parcela bem importante da população esta questão de esquerda/direita tornou-se questão de fé e as lorotas são cultivadas e disseminadas para esta espécie de religião, não há racionalidade alguma, ou muito pouca.

  5. Muito interessante seu raciocínio, acho que se aplica a muitos conhecidos, desde aqueles que concordam que houve golpe, quanto aos que dizem que as denúncias as joias & companhia servem apenas para o Lula desviar a atenção do péssimo governo que está fazendo.

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