Foto: ReproduçãoA menina Eloah da Silva Santos, de 5 anos, morta por um tiro no peito dentro de sua casa na Ilha do Governador, no Rio

Balas a esmo neste país perdido

Morta por bala no peito, que atravessou a janela do quarto onde brincava com a avó, Eloah Santos é o símbolo de uma pátria que perdeu o rumo
18.08.23

Um tiro à toa, disparado não se sabe por quem, atingiu Eloah Santos, de 5 anos, que em teoria estava em lugar seguro, protegida pelas paredes de sua casa na Cova da Onça, Dendê, Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, enquanto brincava inocentemente na companhia de um adulto, sua avó. Thayná Rodrigues registrou no Globo: “Quando foi atingida, a criança pulava sobre a cama em comemoração ao ‘mesversário’ da irmã caçula, de três meses”. O relato da colega segue: “O tiro foi disparado durante uma manifestação de populares por conta da morte de um jovem de 17 anos que teria trocado tiros com a Polícia Militar, de acordo com a própria corporação. Em nota, a PM informou que ‘não havia operação policial no interior da comunidade'” naquele instante.

Dois dias depois, o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, criticou a expressão “bala perdida”. De fato, a definição é inexata, mas mais infeliz é a repetição de teorias improvisadas e, sobretudo, inócuas, como a que ele fez durante o programa “Conversa com o Presidente”, transmitido pelo canal Gov. “Que bala perdida é essa? Alguém atirou para aquele lado, porque senão essa bala não se perdeu. Essa bala foi atirada para aquele lado para atingir alguém e pegou uma criança de 5 anos de idade. Aonde é que a gente vai parar com esse tipo de comportamento, de violência?”, ele disparou. Aonde mesmo, presidente?

O fato de a maior autoridade do país fazer essa interrogação em vez de respondê-la, não com platitudes, mas com medidas práticas de governo, faz parte da dura realidade na qual crianças como Eloah vivem e morrem cedo demais. Nem sequer uma nesga de compreensão dos fatos ele conseguiu transmitir com ela. O chefe do Poder Executivo precisa compreender melhor o busílis dessa questão. A esquerda, a que ele pertence, acredita que mudar o nome dos bairros da periferia do Rio que dispensam subordinação ao Estado, que nos governa, dá um lustro de civilização ao trocar a palavra “favela” para designar esses sítios dominados por quadrilhas de delinquentes por “comunidade”. Favela é uma planta inocente encontrada no cenário de guerra do massacre executado pelo nada glorioso Exército Nacional em Canudos, no sertão da Bahia, contra os devotos do beato Antônio Conselheiro. “Comunidade” doura a pílula pela voga identitária, mas nada tem que ver com a realidade histórica. Esta registra o local para onde fugiram os sobreviventes da guerra suja das autoridades armadas para atender aos interesses de latifundiários que dominam o semiárido nordestino. As tropas da “lei” exterminaram o manso Conselheiro e o bravo Pajeú, mas não têm competência, vontade nem estratégia para expulsar os governos paralelos exercidos por traficantes de armas e drogas em morros inóspitos do município que já foi capital federal e mereceu o apodo de “Cidade Maravilhosa”. No começo deste governo, o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, compareceu ao lançamento de um boletim sobre criminalidade e violações de direitos no Complexo da Maré, maior conjunto de comunidades paupérrimas do Rio. O esquema de segurança das autoridades contou com efetivo de ao menos cinco corporações policiais. A única escolta de Eloah foi a avó. Já está na hora de uma alma caridosa contar isso a Lula.

A família da mártir dos tiros ao léu deste inferno perdido, parodiando pelo avesso o poema de John Milton, já teria certo consolo se as autoridades usassem inteligência e tecnologia para combater os criminosos dominantes nas ex-favelas. O general Walter Braga Netto teve poder para isso quando foi interventor na segurança do antigo estado da Guanabara. Suas limitações de estrategista deixaram rastros de pólvora, fogo e sangue. Ainda assim, ele se candidatou a vice-presidente da República em 2022 e quase foi premiado com a vitória pela incompetência com que dirigiu as polícias fluminenses.

Segurança pública é assunto estadual. Mas Lula, eleitor em São Bernardo do Campo, devia saber que o aliado de Braga que governa o maior estado do país também não consegue conter a fúria de sua PM. Na repressão sangrenta ao banditismo na Baixada Santista, a força comandada por Tarcísio de Freitas matou 18 pessoas até terça-feira passada, 14. Os três Poderes da República anunciaram uma medida que poderia conter a falta de critério na escolha de alvos com a autorização para usar câmaras nos uniformes nessas operações. Inútil. Os PMs não as usam. Quem os pune?

E não me venha o Espírito Santo de orelha de Sua Excelência, Lady Janja, soprar que a culpa é do bolsonarismo autoritário, derrotado pelo voto. As polícias da Bahia, estado comandado pelo PT há 16 anos, mataram mais pessoas em supostos confrontos do que todas as forças policiais dos Estados Unidos juntas em 2022. O UOL comparou dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Mapping Police Violence, dos EUA, para concluir que elas mataram 1.464 pessoas em intervenções em 2022. Nessa estatística, o estado não distingue Polícia Civil de Militar. Já nos Estados Unidos, as forças de segurança mataram 1.201 pessoas. Certo?

 

José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor

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  1. SR. NÊUMANNE, BOM TEXTO MAS O LULA NÃO VAI E NÃO QUER LEI. NORMALMENTE OS ESTELIONATÁRIOS E CORRUPTOS ESTÃO SE LIXANDO PARA VIDAS.

  2. São os PCC's, CV's e similares, os terroristas bandidos q matam mais do que terroristas políticos. Mas o dever de coibí-los é do governo, do Ministério d Justiça, da Presidência da República, do Congresso, do Senado e do STF! Nossas instituições não funcionam! Nossa Constituição não é eficaz, não é justa. Lula/Dilma sempre esteve ligado ao narcotráfico, pelo menos indiretamente, pois tolerou que as FARC atuassem no Brasil, Deu emprego no Minist. da Pesca p esposa d traficante das FARC no Brasil!

  3. é uma vergonha, mas permanece a quantas décadas? Nunca ninguém conseguiu resolver esse problema. Já começo não gostando desse lindo nome "comunidade" como você mesmo escreveu aqui. É favela, sim!

  4. Sobre o tráfico, seus tribunais, suas mortes, desaparecidos e desterrados, não temos nem dados oficiais e a quase totalidade dos jornais nem tocam no assunto. As vítimas do estado paralelo não tem ninguém que as defenda!

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