Foto: ReproduçãoCharge de Jaguar sobre o quadro "Independência ou Morte" que provocou a prisão da redação do Pasquim em 1970

O Pasquim foi o ponto mais baixo do espírito humano

Millôr obviamente tinha talento, mas a reputação de frasista é imerecida; só existe porque as pessoas se acostumaram a pensar nele desse jeito
18.08.23

Imagine um mundo em que Anthony Fauci, o imunologista e antigo conselheiro médico do presidente dos EUA, se gabasse publicamente de ter criado o coronavirus no laboratório de Wuhan. Pois é assim que me sinto quando lembro que Millôr Fernandes se gabava de ter criado o frescobol.

É chocante. Confessava isso rindo, tomando cerveja de sunga. Nos últimos anos de vida dele, eu me perguntava como o deixavam andar livremente por aí, dar entrevistas etc. Mas para prendê-lo pela criação do frescobol seria preciso um esforço sério da comunidade internacional, que infelizmente nunca aconteceu porque, para colocar de uma maneira bem franca, não era do interesse de nenhum dos signatários de Davos.

Mas não queria escrever uma coluna para falar mal do Millôr Fernandes. Afinal, olhem o país em que estamos. Não podemos nos dar ao luxo de desprezar os millôres que de vez em quando aparecem. Com o Gregório Duvivier sendo o humorista do momento, Porchat etc., que sentido faz falar mal do Millôr? Sinto saudades até, e folheio os seus livros com algum carinho.

Além disso só havia sentido falar mal da obra de Millôr, para mim, quando ele ainda estava vivo e era elogiado muito além do merecimento. A verdade é que depois da sua morte parece que cada vez menos se fala dele, talvez até aquém do merecimento. Mesmo agora no seu centenário foram poucas as celebrações. Por causa disso, acalmo meu espírito invejoso e mesquinho (confesse que você me chamou de invejoso e mesquinho) e, no lugar de falar mal de Millôr Fernandes, vou mudar de alvo um minuto e falar mal do Pasquim.

O Pasquim foi o ponto mais alto do espírito carioca e o ponto mais baixo do
espírito humano.

(Sei que essa frase não faz completo sentido — e o Machado de Assis? —, mas sempre quis dizer isso num artigo.)

Vá que não tenham feito coisa que preste, a turma do Pasquim. Mas a desilusão maior é esta: que depois de tanto tempo encarnando, sobretudo para si mesmos, o ideal romântico de oposição e dizendo para quem quisesse ouvir que “jornalismo é oposição, o resto é secos e molhados”, tenham quase todos passado os últimos 20 anos das suas vidas sendo petistas e governistas. E, quando reclamavam do PT, era por este não ser tão de esquerda quanto queriam — o que em termos de coragem política equivale a alguém reclamar de Perón por Perón não ser ainda mais peronista.

“Jornalismo é oposição.” Bah. E eu que cresci acreditando no anarquismo da turma do Pasquim. Mas, segundo o próprio numa entrevista do Roda Viva, Millôr saiu da Veja em 82 por apoiar demais um político. Essa é uma decepção da qual não me recuperei até hoje.

Cresci lendo os elogios de Paulo Francis aos amigos da sua geração, cujos nomes me pareciam míticos como os dos generais de Napoleão inscritos alto no Arco do Triunfo. Na adolescência andava por Ipanema de olhos arregalados, à espera de ver passar um desses gigantes intelectuais — JAGUAR! LEONAM!

Só mais tarde entrei em contato com as obras, e vi que não havia obras. Fora do Paulo Francis, pelo menos (O Afeto que se Encerra é um grande livro de memórias).

Sobre Millôr, obviamente tinha talento. Mas a sua reputação parece ser hoje em dia a de um grande frasista. Ele era? Você releu as antologias de frases dele recentemente?

Alguns anos atrás, precisei matar um tempo e tirei da estante O Livro Vermelho de Pensamentos do Millôr. Jurei que não ia parar de folhear o livro até encontrar uma boa frase. Demorou. Estava em pé e tive que sentar. Sentado, tive que interromper a leitura para dormir e voltar a ler no dia seguinte. E até hoje estou folheando esse livro, procurando uma boa frase.

“A frase mens sana in corpore sano é uma redundância e, como tal, inútil. Não há corpo são sem mente sã, e vice-versa.” Deus do céu. São só duas linhas, mas eu durmo antes de chegar na segunda.

“A falta de autocrítica científica trouxe como resultado apenas multidões de consumidores ávidos e telespectadores passivos.” Dormi de novo. “Se a televisão fosse sem imagem, se chamaria rádio e não teríamos que assistir certos programas.” Hmm, OK. Finalmente uma frase quase mais ou menos.

Abra ao acaso outra antologia de frases, Millôr Definitivo, e verá coisas como “tristezas não pagam dívidas. Nem bravatas, por falar nisso” ou “uma democracia começa com três refeições diárias”. Eu não teria ânimo de publicar essas frases no Twitter, se elas me ocorressem num momento de pressão baixa e torpor mental, mas o Millôr publicou isso em livros.

Mas, por mais que eu não queira ser justo — quem quer ser justo? —, sejamos justos. Fábulas Fabulosas é um livro bom, e A Verdadeira História do Paraíso é bem OK. Sua reputação de frasista é imerecida — dez boas frases no máximo. Essa reputação só existe porque as pessoas se acostumaram a pensar nele desse jeito. Mas os desenhos eram muito bons.

É verdade que, comparada com a geração atual de humoristas, a turma do Pasquim parece o círculo de Goethe em Weimar. Então, OK: mesmo se o Millôr foi excessivamente valorizado em vida, neste país temos mesmo que excessivamente valorizar quem foi razoavelmente valorizável.

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  1. Crítica surpreendente (e eivada de injustiça) do respeitável autor do texto a um dos mais notáveis homem da cultura brasileira, inclusive a popular). Millor marcou época na imprensa deste país em todos os setores que militou. Inclusive como fraseologista.

  2. Não há que esquecer que o Pasquim, que li da primeira à última edição, destruiu a carreira do Wilson Simonal, injustamente.

  3. a única coisa que o articulista acertou foi que ele tem inveja de millor. artista plástico, poeta, compositor, dramaturgo, jornalista, etc. e um tremendo formador de opinião, millor foi um genio. a crusoe deveria arranjar criticos de melhor jaez. o sujeito pode até não gostar de millor. tudo bem, gosto é que nem braço, há pessoas que não tem, agora, desonestidade é o fim da picada.

  4. Teve uma do Millor em Veja, se não me falha a memória, em 1974, que sempre gostei, falava sobre a carga tributária no Brasil, dizia: "e pensar que os brasileiros quiseram ficar independentes quando os portugueses exageraram na cobrança de impostos". Continua atualíssima.

  5. De fato, acho que 1 artigo em 10 do Alexandre são bons. Não parece estar muito melhor que o Millôr que descreveu. Mas vejo que sente uma necessidade de chocar. Triste.

  6. O próprio Millor criticou os ex-pasquins que receberam indenização por terem sido perseguidos na ditadura militar, dizendo que sempre acreditou que aquilo era ideologia, não caderneta de poupança. Algo assim.

  7. Gostei muito deste seu texto. Acho que a maioria dos brasileiros ainda vive aquele momento PASQUIM. Era engraçado, mas só. Tenho um livro do Millor: A vaca foi pro brejo. Frases brasileiras sem nexo que ele traduz para o inglês ao pé da letra. Ficam engraçadas, mas não precisava de livro. Em uma página se podia entender aonde ele queria chegar. Quem está criticando seu texto, Alexandre, que procure o livro "A vaca foi para o brejo". Parabéns!

  8. Artigo horrível sobre o grande Millor. Quem conhece a obra do Millor, sabe que ele merece respeito. O Brasil de hoje precisa cada vez mais de muitos Millores...

  9. Toda vez que você projetar algo que possa ser usado até por idiotas, provavelmente vai ser usado de maneira idiota.

  10. Concordo plenamente com os dois comentários que precedem o meu. Só que, inspirado no próprio pensamento do incomparável Millôr, eu o citaria para me manter tolerante com o autor do artigo, de quem discordo: "Livre pensar é só pensar"...

  11. Parabéns, Alexandre Soares Silva, você escreveu o pior artigo da história da Crusoé. E ao terminar de ler o seu artigo, não pude esquecer de uma das grandes frases de Millôr: “quando um chato diz que vai embora, que presença de espírito!”.

    1. Adorei o artigo. Parabens .

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