Cesar Greco/Palmeiras/by CanonO goleiro Weverton, do Palmeiras, em jogo contra o Corinthians

Torcidas únicas

Sem os adversários, não tem jogo — e isso não vale apenas para o futebol
15.06.23

Antes de escrever o clássico A riqueza das nações (Edipro), Adam Smith publicou Teoria dos sentimentos morais (Folha), descrito por ele mesmo como um “ensaio para uma análise dos princípios pelos quais os homens naturalmente julgam a conduta e o caráter, primeiro de seus próximos, depois de si mesmos”. Entre as várias reflexões que compunham esse curso de filosofia moral da Universidade de Glasgow, uma em particular ajuda a entender o clima bélico das redes sociais. Smith constata que regulamos os comportamentos uns dos outros pelo contato social, por sinais físicos. Um cruzar de braços, uma virada de cabeça ou um franzir de testa são o bastante para modelar o discurso de quem está falando algo que não nos agrada. É instintivo e imediato, previne potenciais ofensas e não existe na rede social.

Lembrei do clássico escocês ao ler Forasteiros (Grande Área), as reflexões de um palmeirense maluco que se aventurou durante anos em estádios adversários, primeiro em meio à famigerada Mancha Verde e, após alguns traumas, por conta própria. “Incontáveis fatores levam alguém a se deixar fascinar pela arquibancada, mas creio que nenhum é tão determinante quanto a experiência de ser torcedor visitante”, escreve Rodrigo Barneschi, no livro publicado em 2021. “Nada no futebol provoca tamanha profusão de sentimentos ou exige tanto, em termos de renúncias e sacrifícios. Ser torcedor visitante evoca o caráter identitário de pertencer a uma coletividade que se opõe a outra, e integrar esse grupo pode ser tanto um escudo quanto uma razão de viver.”

O clima das viagens para um jogo fora de casa no Brasil é inóspito. Ônibus decrépitos circulam durante horas por estradas perigosas sob o risco de cruzar com torcidas rivais, que, a depender do histórico, podem ser seus inimigos mortais. Quando o jogo é fora do território nacional, o desconforto de uma caravana como essa se multiplica. E, mesmo assim, alguns torcedores se aventuram semanalmente, parte deles por amor aos times, outros em busca de confusão, da emoção do conflito.

Os clássicos entre os principais times de São Paulo são jogados com torcida única desde 2016, quando uma briga entre palmeirenses e corintianos resultou na morte de uma pessoa. Não foi a primeira morte nessas condições, nem a última. No ano seguinte, mesmo sem torcidas dividindo estádio, um palmeirense foi esfaqueado por dois corintianos em dia de jogo e morreu. A partir disso, é possível argumentar que as mortes não têm a ver necessariamente com a presença de duas torcidas num mesmo estádio. Parece óbvio, contudo, que limitar a convivência de grupos que não conseguem conviver é a melhor forma de prevenir tragédias. Melhor do que isso, só se todas as torcidas fossem abolidas e as partidas pudessem ser assistidas apenas pela televisão, como ocorreu durante a pandemia.

O exagero expõe o absurdo de simplesmente aceitar que parte dos torcedores de São Paulo não sabe se comportar, mas também a limitação do poder público para garantir uma ordem mínima em eventos de massa. Barneschi conta em seu livro a experiência de se infiltrar em torcidas de outros times. Sua obsessão pelos estádios era tanta que o levou a assistir, em meio a vascaínos, ao histórico gol perdido por Diego Souza diante de Cássio, pela Libertadores da América de 2012, no Pacaembu.

Na condição de infiltrado anônimo, enxergo nos rivais meus sonhos, frustrações e temores inconfessáveis. Vejo que tanto lá quanto cá existem as mesmas mandingas e superstições, e que os tipos de torcedor são idênticos em toda parte, mudando, quando muito, a cor da camisa”, descreve o autor, acrescentando que “os obstáculos assemelham-se e, ao contrário do que se tenta apregoar de maneira falaciosa, não há qualquer tipo de monopólio de sofrimento ou diferenciação que eleve, a níveis inatingíveis, a felicidade de uma ou outra coletividade”.

Descontada a alfinetada nos corintianos — que, aliás, estão voltando a sofrer com mais intensidade —, esse tipo de percepção, sobre as semelhanças entre os diferentes, é impossível de alcançar num ambiente de torcida única. E isso não vale apenas para o futebol ou o esporte em geral. Sem os adversários, não tem jogo.

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  1. A torcida única é a rendição do estado face a um grupo de marginais, adotando uma estratégia de eficácia relativa que prejudica o esporte e o lazer de milhares de torcedores pacíficos.

  2. Os pseudo torcedores que provocam brigas e até mortes levaram à situação de torcida única estragando uma das coisas mais vibrantes que e a manifestação de duas torcidas no estádio. O pior que continuam suas mazelas marcando confrontos pelas redes sociais. Não gostam de futebol.

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