Foto: Reprodução/Redes SociaisRoger Waters: ele cruzou a linha que separa a crítica ao governo do ataque a Israel e seus habitantes

Não, Roger Waters não é nazista – é só mais um antissemita de esquerda

Nem por isso justifica-se a censura à turnê brasileira do ex-baixista do Pink Floyd, pois ter ideias odiosas não é o mesmo que incitar o ódio
15.06.23

Eu já assisti a um show de Roger Waters. Foi no outrora glorioso estádio Olímpico, do Grêmio, em 2002. Não foi um show ruim, mas tampouco foi memorável. Só consigo me lembrar de uma música que ouvi naquela noite: Set the Controls for the Heart of the Sun, do segundo disco do Pink Floyd.

Na adolescência, eu era um fã inflamado do Pink Floyd. Tinha todos os discos e gostava até do lamentoso e lamentável The Final Cut, que deveria ter sido o último disco da banda (não foi: o Pink Floyd voltaria a gravar discos e fazer shows, sem Waters, que até hoje destila rancor pelos antigos companheiros de palco e estúdio). Era de se esperar que eu entrasse em um transe nostálgico ao ouvir o principal letrista da banda tocando canções antigas. Mas não.

O show passou em branco não só pela minha memória afetiva, mas também pelo noticiário político. Waters ainda fazia música e não só proselitismo. Em Porto Alegre, ele não apareceu em cena com casacão preto à moda Gestapo e metralhadora na mão (se tivesse feito isso, eu provavelmente teria uma segunda memória do show…). Teve a má ideia de fazer isso no mês passado, em Berlim, onde imitações farsescas dos agentes de Himmler fazem soar todos os alarmes, por óbvias razões. A política alemã investiga Waters por essa performance, que teria glorificado o nazismo e incitado o ódio.

No Brasil, onde shows do músico inglês estão programados para outubro e novembro, os censores já estão na ponta dos cascos. O advogado Ary Bergher, vice-presidente da Confederação Israelita do Brasil (Conib) e presidente do Instituto Memorial do Holocausto, solicitou ao Ministério da Justiça que os shows de Waters sejam proibidos. O Globo noticiou que o ministro da Justiça, em conversa com Luiz Fux, teria dito que a Polícia Federal colocará o ex-Pink Floyd em cana se ele repetir no Brasil o esquete sobre fascismo que tanto barulho causou na Alemanha. No Twitter, Flávio Dino esclareceu (sem se referir à suposta conversa com Fux) que a lei brasileira não admite censura prévia. Mas citou a lei brasileira que proíbe a ostentação da suástica.

Nos limites dessa lei, Waters está a salvo: a braçadeira que ele usa no show não traz a cruz gamada, mas dois martelos cruzados. Criação do cartunista Gerald Scarfe, esse é o símbolo do movimento fascista em que Pink, o roqueiro fictício de The Wall – o disco de 1979 e o filme de 1982 – acaba se enredando, no que talvez seja só um delírio seu.

Se o roteiro da performance em Berlim seguiu a mesma linha, Waters tem razão quando diz que a cena não é uma apologia, mas uma crítica ao fascismo. No filme, a conversão do ídolo pop em camisa-preta é o único momento autocrítico de um enredo marcado pelo tratamento indulgente de um personagem claramente modelado no próprio Waters. Há ambiguidades incômodas nessa transformação: The Wall estaria sugerindo que os megashows de rock são o sucedâneo natural dos comícios de Nuremberg?

Em todo caso, quando disco e filme foram lançados, no já remoto século XX, ninguém pensou em acusar o compositor e roteirista de simpatias pelo nazismo. Ocorre que a trajetória política recente de Waters abriu a porta para novas ambiguidades, que já não se limitam ao universo ficcional.

O ex-baixista do Pink Floyd engajou-se no BDS, movimento pró-palestino que prega o boicote total a Israel. Ativista dedicado, Waters critica publicamente artistas que se apresentam em Jerusalém e Tel-Aviv – entre eles, Thom Yorke, Nick Cave e Caetano Veloso.

O quer que se pense sobre as políticas israelenses nos territórios palestinos, o boicote proposto pelo BDS me parece um modo autoritário (e burro) de exercer pressão política. Isolar Israel como pária entre as nações prejudicaria não apenas o atual governo linha-dura de Benjamin Netanyahu, mas todos os cidadãos do país – da direita e da esquerda, da maioria judaica e da minoria árabe.

Em defesa da sua causa, Waters – falando como ele próprio, não mais interpretando um personagem – cruza a linha que separa a crítica ao governo do ataque ao país e a seus habitantes. Dá para pelo menos desconfiar de que tal desprezo pela única nação judaica do mundo é um traço antissemita.

A confirmação da suspeita pode ser encontrada no show – não na cena tão discutida do casaco preto e da metralhadora, mas em um porco inflável que sobrevoa a plateia. Trata-se de um porco capitalista: em sua barriga gorda, estão estampados o logo de uma empresa de petróleo e uma estrela de David. A associação entre os judeus e o “grande capital” é um tropo antissemita clássico.

Outro lugar-comum racista é a ideia do judeu oculto em posições de poder. Em uma boa entrevista realizada por meu amigo Sérgio Martins em 2017, Waters afirmou que uma menção crítica ao “povo escolhido” na letra da canção Déja Vu foi censurada em seu disco Is This the Life We Really Want?. Ele só não esclareceu quem seria o censor. Os Sábios de Sião, talvez?

Então ficamos assim: Roger Waters não é nazista, nem fascista. É só mais um típico antissemita de esquerda. Me surpreende que nas suas entrevistas ainda não tenha aparecido – que tenha visto, pelo menos – o mantra dessa turma: “Não sou antissemista, sou antissionista”.

Tudo considerado, no entanto, não vejo qualquer base para que o velho roqueiro inglês seja preso, ou impedido de entrar no Brasil, ou proibido de se apresentar no país. Pois existe uma diferença considerável entre ter ideias odiosas e incitar o ódio. Que Roger Waters faça bons shows no Brasil, em sua turnê de despedida. Não, eu não vou. Mas tampouco vou convocar boicotes contra ele.

***

Nick Mason, baterista do Pink Floyd, montou um grupo para tocar músicas da fase mais psicodélica de sua histórica banda, todas anteriores a The Dark Side of the Moon. Nesse show eu iria. Set the Controls for the Heart of the Sun está no repertório.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Adoro o Pink Floyd. Mas, há muito tempo, o Roger Waters é uma caricatura de si mesmo. Desde que ele saiu da banda, começou a sua própria decadência. Os que ficaram na banda pelo menos mantiveram a diginidade do nome da banda.

  2. Não deve ter tido muita repercussão, mas eu estive num show de Waters em Curitiba, na época das eleições de 2018. No final do show ele começou a fazer "agrados" ao Lula. O povo vaiou. Não fiquei até o fim pois nesse momento senti uma decepção muito grande. Também sou fã do Pink Floyd, mas confesso que Waters conseguiu queimar parte da admiração que eu sentia por toda a Banda.

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