Agência SenadoUm Parlamento desfavorável ao governo não pode ser execrado como se fosse o principal inimigo da pátria

Quando a imprensa vira assessoria de imprensa

Ficar insistindo num golpe bolsonarista só serve para desviar a atenção das ameaças reais que ainda pairam sobre a democracia brasileira
15.06.23

Está claríssimo que tramava-se um golpe de Estado nos subterrâneos (e até na superfície) do governo Bolsonaro. Também está claro que esse golpe não teria condições de se concretizar, por falta de força político-militar para tanto. Mas isso não significa que não tivesse sido intentado. E, se Bolsonaro fosse reeleito, as condições objetivas para um golpe poderiam, quem sabe, se constelar mais adiante.

Por isso foi tão importante impedir a reeleição de Bolsonaro. Ainda que, desgraçadamente, a única maneira de fazer isso — no segundo turno — tenha sido votar num líder com pouca intimidade com a democracia e que hoje está alinhando o Brasil ao eixo das maiores (e menores) autocracias do planeta. Pela vitória apertada de Lula parece óbvio que um protesto do tipo voto nulo, mesmo se fosse massivo, não alcançaria o objetivo de impedir a reeleição de Bolsonaro.

O fato, porém, é que isso passou. Hoje não há mais a menor condição (objetiva ou subjetiva) para um golpe bolsonarista. Bolsonaro perdeu, está fora e, provavelmente, ficará inelegível. Os bolsonaristas continuam não contando com força político-militar para desfechar um golpe.

Então, ficar insistindo nesse ponto só serve para desviar a atenção das pessoas das ameaças reais que ainda pairam sobre a democracia brasileira, não mais da parte do populismo-autoritário bolsonarista e sim do neopopulismo lulopetista. Não a ameaça de um golpe de Estado, pois que essa nunca foi mesmo a estratégia do PT e sim a de controlar a sociedade a partir do Estado conduzido pelo partido hegemônico (e hegemonista), não de modo fulminante, mas pouco a pouco, quase homeopaticamente.

O processo lento de conquista da hegemonia conduzido por um líder e por um partido não convertidos à democracia (que acham que não há ditadura na Venezuela e que Maduro é um democrata, que acham que o ditador Putin tem suas razões pois foi agredido pela Otan, a serviço do imperialismo americano e do neocolonialismo das nações democráticas europeias) significa também uma ameaça real — inclusive porque mais realista — à nossa democracia.

A quem caberia fomentar o debate público, chamando a atenção da população para esses perigos? Ora, em qualquer democracia, este seria o papel próprio de uma oposição democrática.

É desagradável ficar vaticinando, mas tem hora que é inevitável. Se não surgir uma oposição democrática, nosso regime vai se autocratizar. Teremos ao final menos e não mais democracia. O fato de existir uma oposição antidemocrática (bolsonarista) não tem nada a ver com isso.

Governo há em qualquer regime. Oposição só nas democracias. Em outras palavras, não há democracia sem oposição. E não há democracia liberal sem que a oposição democrática seja aceita, reconhecida e valorizada como componente fundamental do regime político.

Caberia também à imprensa – aos meios de comunicação profissionais – chamar a atenção para esses pontos. Mas, por algum motivo, a chamada “mídia” não faz isso. Pelo contrário, contribui para não esclarecer ao confundir qualquer oposição com a oposição bolsonarista. Tudo que é contra o governo é colocado no mesmo balaio dos golpistas de 8 de janeiro. Isso chega a ser uma falsificação grosseira. O contingente de pessoas que não concordam com o PT é muito maior do que o de bolsonaristas, conforme mostra o diagrama abaixo. E o fato de não haver uma oposição democrática articulada e partidariamente definida não significa que não haja um campo imenso para o seu florescimento.

Não vemos isso — aqui é preciso reconhecer — porque regredimos. Regredimos nas análises (que ficaram mais superficiais) e nos comportamentos (que ficaram mais adversariais). Fomos assolados pela volta de um passado do qual nos imaginávamos desvencilhados.

Em parte, explica-se. Jornalistas políticos, em sua maioria, não fazem mais análises de conjuntura, mas crônicas da corte. Deixam-se emprenhar por “plantações” governistas como se fossem revelações de bastidores. E dificilmente resistem à tentação de dar conselhos ao governo. Involuntariamente ou não, fazem parte do que poderíamos chamar de “sistema de governo ampliado“, em que um vai pautando o outro com “narrativas” que favorecem ao governo como se fossem apurações de fatos.

Sim, os veículos de imprensa se pautam mutuamente. O que vira notícia comum é uma notícia, não um fato. Há um fato na origem, mas se ele não for garimpado e interpretado por um órgão e repercutido por outros, não fará parte da “realidade“. É uma caixa de reverberação (e de captura de fluxos). Basta ver como são parecidas – quando não iguais – as manchetes de todos os principais portais de notícias do país.

Agora, por exemplo, tudo no jornalismo virou cálculo sobre maioria e minoria no Congresso. Policies viraram politics (o que significa que, a rigor, não há mais política pública, apenas política privada). Só se fala em correlação de forças para a governabilidade. O episódio envolvendo a substituição da ministra do Turismo é uma prova. Nada se ouve sobre planos e desempenho do Ministério do… Turismo (política pública), mas apenas sobre o número de votos congressuais que o governo Lula ganhará ou perderá (uma contabilidade de política privada).

Podemos afirmar que, lamentavelmente, boa parte da imprensa vira assessoria de imprensa do governo, quando se deixa pautar pelos interesses do governo ao ficar exibindo um filme antigo para eternizar uma polarização pretérita com Bolsonaro, sobretudo quando permanece insistindo, requentando e repetindo ad nauseam notícias sobre o golpe (na verdade, a tentativa de golpe) bolsonarista como se ainda fosse uma ameaça real atual. E quando a imprensa vira assessoria de imprensa temos o primeiro sinal de que um processo de autocratização da democracia pode estar em curso.

Não estamos dizendo que é ilegal, nem imoral. Dentro de certos limites, faz parte do jogo democrático. Mas a popularidade do governo hoje depende de alguns (poucos) grandes meio de comunicação, de dois institutos de pesquisa e de umas três dezenas de influencers governistas. Já a governabilidade depende do Judiciário. Estamos, porém, chegando aos limites do que é legítimo no jogo democrático.

De qualquer modo, esse não é um bom arranjo de governabilidade em uma democracia. Porque não é um arranjo propriamente político, mas estabelecido por fora da política, tentando compensar – artificialmente – a correlação desfavorável de forças no parlamento. Mas parlamentos (livres) são as instituições por excelência da democracia, não governos (que existem também em qualquer autocracia).

Goste-se ou não da sua composição, o Congresso que temos foi legitimamente eleito. E nele conquistar democraticamente governabilidade depende do surgimento de uma oposição democrática, para que possa haver jogo (a democracia é um jogo plural, um jogo que não pode ser jogado numa dinâmica bipolar). Do contrário vira guerra do “nós” (o governo) x “eles” (a maioria congressual, misturando indevidamente oposição antidemocrática e oposição democrática). Para tanto, porém, um Parlamento desfavorável ao governo não pode ser execrado pela imprensa como se fosse o principal inimigo da pátria. Se a imprensa é uma instituição (lato sensu) da democracia, ela tem por dever diferenciar os populistas (digam-se de esquerda ou de direita) dos democratas não populistas.

 

Augusto de Franco é escritor

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Falar em tentativa de golpe sem armas chega a ser ridículo, se tratou de um vandalismo , que precisa ser punido , e só. Não creio que a eleição do atual presidente seja melhor, demais concordo com o autor, com ajuda da imprensa perderemos nossa democracia aos poucos e sem golpe armado, vide Venezuela

  2. SÓ SE FAZ OPOSIÇÃO POLÍKTICA PARA ENCHER OS PRÓPRIOS BOLSOS. O RESTO É RESTO. POVO BHURRO.

  3. Ótimo. De fato, o jornalismo político que temos é chapa branca, ou pautado por casos de corrupção ou foda-se sobretudo nos esquemas de poder, o que empobrece ainda mais o debate público, a discussão de projeto de país e nivela (ainda mais) por baixo o esclarecimento popular acerca do desempenho do governo e do caminho traçado

  4. Logo associei tudo isso a figura do Octávio Guedes, comentarista político da Globo News. Com o carisma de uma lata de picles, esse não perde uma oportunidade de falar do Bolsonaro e da intentona golpista, ainda que o assunto dê poucas franjas para a inclusão do ex-verdugo de Brasíia. Esse tipo de comportamente também contribui para a erosão da democracia, na medida que marginaliza a oposição democrática do debate. Depois, não adianta reclamar de uma nova revolta do subsolo. A bomba tá plantada.

  5. Concordo em quase tudo com o autor, mas discordo que a eleição de Lula seria a melhor opção, pois como já estamos vendo o golpe do PT está a pleno vapor e não há a quem recorrer enquanto que, se Bolsonaro tivesse ganhado, todas as ditas instituições “democráticas” e inclusive a imprensa estariam atentos aos movimentos do governo e não estaríamos sem oposição como temos hoje.

  6. Bolsonaro é um saudoso da ditadura militar, que já acabou. Lula é puxa-s de ditaduras atuais. Bolsonaro não conseguiria dar um golpe mesmo querendo. Lula já está dando o seu.

  7. Que manobra intelectual para passar o pano para o nine. A cada edição penso seriamente em deixar de assinar a revista. Já não tem autores e nem artigos de calibre. Espaço que a Revista Crusoe tem preenchido com maestria.

  8. É uma pena que as pessoas se "esquecem" que, em uma democracia, TODOS têm direito de expor suas opiniões. Inclusive os antidemocráticos. O Art. 5º da nossa Constituição garante isso quando assegura que "é livre a manifestação do pensamento", sem fazer restrição sobre o pensamento ser democrático ou antidemocrático.

  9. NO CENSOR PLEASE ... Crusoé que perdeu seu público é a fiel prova disto com matérias como esta para manipular idiotas pois qualquer jornalistazinho neófito formado na Universidade de Cabrobó sabe que não se anuncia golpe de estado e que neste país ridículo nem precisa disto e se o boquirroto presidencial quisesse bastava usar o Art 142 da CF que deveria ter utilizado quando o STF tutelou o Estado e rasgou a Constituição o que impediria que o futuro da nação fosse a escravização e o lixo fatais.

    1. MCG ... sempre fomos o país da mentira e da vergonha onde a libertação dos escravos foi uma mentira porque um trabalhador miserável custava infinitamente menos e esta República de merda simplesmente tirou o Brasil do primeiro mundo para o quinto ... o Brasil é uma farsa ridícula e cínica, dura e cruel verdade.

    2. Concordo Amaury, utilizar artigo da Constituição é golpe e ato antidemocrático, rasgar a Constituição e querer impor censura é democracia. No governo "antidemocrático" de Bolsonaro não havia essa "patrulha" das pessoas nas redes sociais e todos falavam sem ficar medindo as palavras. Mas, na cabeça dos articulistas da Crusoé, houve tentativa de golpe com pessoas desarmadas, num domingo à tarde, com os prédios vazios.

  10. Salvo o “ achismo” do auto sobre golpe, o artigo é muito importante. Sugiro, por didatismo, dar nomes aos bois dos órgãos de imprensa que estão deliberadamente ajudando o governo atual em detrimento da verdade.

Mais notícias
Assine agora
TOPO