Flickr/CafeCredit.comNotas de dólar: "cash" perdeu prestígio - Foto: Flickr/CafeCredit.com

Você está pronto para pagar a dívida americana? 

Os EUA se tornaram uma potência econômica, conquistando no início do século 20 um feito que coube a poucas nações na história: o de emissor da moeda global
15.06.23

A briga nos Estados Unidos entre republicanos e democratas para definir o aumento no teto da dívida esconde uma verdade inconveniente: quem pagará essa dívida é o resto do mundo, que não elegeu nenhum desses parlamentares.

Foi sob o lema “No taxation without representation” que os americanos iniciaram, no século XVIII, a guerra que levaria à sua independência do Reino Unido. Queriam dizer com isso que não aceitariam mais a cobrança de impostos da coroa se não tivessem o direito de indicar representantes para o parlamento britânico.

Com base nessa ideia, um grupo de fazendeiros americanos derrotaria a maior potência militar da época, estabelecendo o que viria a ser a nação mais rica já conhecida na história.

É, de fato, uma bela história, em especial quando desconsideradas algumas incongruências. A terra da liberdade nasceu com boa parte da sua população vivendo sob o regime de escravidão. Tal fato só mudaria um século após a independência, com consequências vistas até hoje.

No campo da economia, a ideia de nação dos pais fundadores também foi emblemática.

Pode-se dizer que os EUA são a primeira nação moderna a ser criada sob o conceito de que riqueza se cria, não se toma (ainda que seu professor de história ou geografia possa ficar indignado com isso).

Os Estados Unidos nasceram em um mundo onde o mercantilismo ainda tentava resistir. E como tal, tiveram disputas internas com base nestes conceitos do “velho mundo“.

Fato é que os EUA se tornaram uma potência econômica, conquistando no início do século 20 um feito que coube a poucas nações na história: o de emissor da moeda global.

Ao contrário de outros países que já ocuparam esse posto, como a Espanha e o real de 8, a França e o franco, a Holanda e o florin, ou o Reino Unido e a libra, os EUA foram a única nação a deter tal poder em um mundo de moedas fiduciárias.

Em suma, as moedas existentes no planeta hoje não possuem o chamado “lastro“. Não há qualquer limitação física para o dinheiro.

Desde que Richard Nixon partiu para Camp David em 15 de agosto de 1971, determinado a criar uma solução temporária para a crise americana, o mundo convive então com uma “solução definitiva“, ou ao menos é o que esperam os americanos. Essa solução pode ser resumida em: não há limite para a quantidade de dólares no mundo, exceto pela capacidade de os outros países continuarem a aceitar essa impressão desenfreada.

O dólar-ouro, estabelecido de fato em Bretton Woods, em 1944, já não existe mais. A limitação para a quantidade de dólares existentes, portanto, é uma limitação política.

De fato, desde os anos 60, os diversos governos que se sucederam nos EUA lidam apenas com um inconveniente de ter de pedir ao Congresso um aumento no “limite do cartão“. E desde 1962, os EUA aumentaram o limite do teto da dívida 79 vezes.

Aumentar este limite significa, na prática, autorizar o FED, o Banco Central americano, a imprimir dólares.

Isso é necessário para financiar os constantes déficits do Tesouro americano. E essa conta não para de crescer.

Em maio deste ano, o governo de Joe Biden teve um déficit de US$240 bilhões.

Sim, enquanto pressionava o Congresso para autorizar um aumento na dívida, Biden gastava US$8 bilhões a mais por dia do que arrecadava.

Para você ter uma noção, isso implica que em cada dia do mês de maio, os EUA tiveram um déficit maior do que o déficit do governo brasileiro em 2021 (de 35 bilhões de reais).

Os 240 bilhões de dólares gastos pelos EUA em um único mês são também maiores do que a riqueza gerada em um ano por 163 países.

De outra perspectiva: apenas 23 governos no mundo gastam em um ano o que os EUA tiveram apenas em déficit em maio.

O resultado é que a dívida americana já beira os 32 trilhões de dólares. É 120% do PIB americano. Um número elevado, que se sustenta em boa medida, pois os EUA possuem um estoque de riqueza acumulada.

A riqueza total por lá equivale a 147,7 trilhões de dólares.

A grande questão, porém, é que dívida equivale a um compromisso. Esse compromisso implica que o governo deverá pagar, no futuro, com base em valores arrecadados junto aos pagadores de impostos.

Agora, com base nestes dois indicadores, o do PIB americano, de 25 trilhões de dólares, e a riqueza total citada acima, como é possível pagar uma dívida de 32 trilhões de dólares?

A resposta mais plausível, claro, é de que o governo irá buscar se apropriar da riqueza total.

O problema é que, ao contrário da riqueza produzida na atividade econômica, essa riqueza total está sedimentada em forma de “patrimônio“. Em suma, são participações acionárias, imóveis, terras e etc.

Tributar isso não é uma tarefa tão fácil, uma vez que depende de os pagadores de impostos possuírem liquidez.

Exceto por um outro tipo de imposto, cuja cobrança é muito mais fácil: a inflação.

A inflação é um imposto silencioso, que do ponto de vista do cobrador (o governo ou os bancos), pode promover milagres.

A inflação pode, por exemplo, fazer com que o PIB nominal cresça, uma vez que o PIB é medido a preços correntes. Isso permitiria diminuir a relação dívida/PIB de forma discreta e silenciosa.

Mas a situação não para por aí. Como disse o ex-ministro das finanças francês, Valery Giscard, “custa aos Estados Unidos apenas alguns centavos para imprimir uma nota de 100 dólares, mas custa ao resto do mundo muito trabalho para obtê-la“.

E é nessa situação, que você acabará pagando a conta da dívida americana.

Para reduzir seus compromissos, o governo americano terá de reduzir os juros, inundando o mundo de dólares. Com cada vez mais dólares, os preços tenderão a subir, aumentando o PIB americano.

Mas, se você ainda se lembra do Brasil nos anos 80, talvez se lembre de uma premissa fundamental da inflação: quem encostar primeiro no dinheiro tende a se beneficiar.

Isso é, se o dinheiro perde valor ao longo do tempo, quem o usa primeiro, tende a obter maior valor em troca. E quem encosta primeiro no dinheiro? O governo e quem o produz, ou seja, os EUA.

Por aqui, teremos de trabalhar para obter dólares que devem valer cada vez menos.

Tudo isso, claro, para manter o famoso “privilégio exorbitante“, como descreveu o também francês Charles DeGaulle, sobre o privilégio americano de imprimir a moeda do mundo.

Resta saber o quanto essa situação irá durar, afinal, não há na história o caso de uma moeda que dure para sempre.

 

Felippe Hermes é jornalista

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  1. A escravidão do mundo face ao dólar é o segredo para os EUA conseguirem sustentar a máquina militar que têm, assegurando sua influência e poder diplomático. Por isso a China trabalha tanto para tirar países aliados do comércio com dólares. Nós, entre as duas potências, perdemos com o dólar dominante e se ele ruir, já que nossa moeda não vale nada e as principais reservas, em dólar,se pulverizaram também.

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