XinhuaXi Jinping com Putin: os dois querem uma nova ordem mundial, apoiada pelo Brasil

“A guerra perpétua” de Putin

O presidente russo é a comprovação de que a paz imaginada por Kant não estava próxima de ser concebida, menos ainda realizada
13.04.23

Kant era um idealista: seguindo o exemplo do abade Saint Pierre (Projet de paix perpétuelle, de 1713), que propunha uma liga de estados e uma corte internacional, estabeleceu, em 1795, que a paz perpétua dependeria da existência de regimes constitucionais, da liberdade de pensamento e do respeito à autonomia das federações. As monarquias absolutistas do final do século 18, assim como a tentativa de “paz imperial” de Napoleão, no início do século 19, comprovaram, ao contrário, que a “paz perpétua” não estava próxima de ser concebida, menos ainda realizada.

Depois que o imperador francês foi derrotado em Waterloo — foi a primeira e última vez que tropas russas andaram por Paris —, o Congresso de Viena de 1815 tentou construir uma “ordem mundial”, ainda que oligárquica, já que a anterior, a Paz de Vestfália (1648), fracassou em suas promessas. A “ordem mundial” de Viena manteve a Europa mais ou menos em paz durante um século, mesmo com uma primeira guerra da Crimeia no meio.

Uma nova tentativa de “ordem mundial”, a da Liga das Nações, concertada nas negociações de paz de Paris, no seguimento da Grande Guerra (1914-1918), de cunho também oligárquico, tampouco foi capaz de controlar a “vontade” de potências expansionistas, empenhadas em aumentar sua “representação” na cartografia existente: o projeto mussolinista de novo império romano, a brutal imposição do Lebensraum hitlerista e da “solução final” ao “problema” judeu, e o esforço dos fascistas japoneses de superar o colonialismo europeu na Ásia Pacífico pelo seu próprio império, sobretudo na China.

A despeito de um tratado para evitar novas guerras pela via da arbitragem e mediação – o Pacto Briand-Kellog de 1928 –, não foi possível evitar a invasão da Manchúria pelo Japão, em 1931, e depois a tentativa de conquista do resto da China, em 1937, a invasão da Etiópia (o único país africano independente e membro da Liga das Nações) pela Itália fascista em 1935, assim como a anexação da Áustria e da Tchecoslováquia por Hitler em 1938, seguida da invasão da Polônia por Hitler em 1939, num acerto com Stalin de esquartejamento do país, o que deu início ao mais terrível morticínio de toda a humanidade. Stalin aproveitou, em 1940, para abocanhar os três países bálticos – independentes desde 1919 –, assim como para tentar reincorporar a Finlândia ao antigo espaço do império czarista, ampliado na nova ordem bolchevique. A Finlândia resistiu, e permaneceu neutra pelos 80 anos seguintes.

Um século antes das negociações entre as nações aliadas para criar uma “nova ordem mundial”, em Dumbarton Oaks, em Bretton Woods, em Ialta e em San  Francisco, um jovem filósofo alemão, Arthur Schopenhauer, empreendeu a tentativa de corrigir o idealismo transcendental de Kant ao propor uma nova interpretação do mundo: a “coisa em si” já não seria mais a encarnação da razão pura, mas o resultado da vontade humana, como princípio fundamental da natureza, uma força cega, incontrolável que move o mundo. Ora, ninguém, atualmente, encarna melhor essa vontade cega de dominar o mundo do que o neoczar russo, Putin, embora sua “representação do mundo” corresponda bem mais a uma “guerra perpétua” do que propriamente a um projeto kantiano de paz durável.

Putin está muito distante, mais exatamente do lado oposto, de Kant, cujo projeto de paz perpétua proclamava, entre outros requisitos, que “nenhum Estado independente, pequeno ou grande, pode ser adquirido por um outro Estado por herança, troca, compra ou doação”, ou ainda, que “nenhum Estado deve imiscuir-se com emprego de força na constituição e no governo de um outro Estado”. Para Kant, a constituição civil nos Estados deve ser republicana, isto é, constitucional. Para Putin, isso é mero detalhe, com o qual ele não está nem um pouco preocupado. A “representação” que ele concebe para cada Estado deve ser uma que se amolde à vontade dos mais poderosos dentre eles, em total contradição com o federalismo de Estados livres de Kant, regidos pelo Direito internacional.

Cada nova ordem internacional só foi estabelecida ao cabo de terríveis guerras, seja a guerra de Trinta Anos que precedeu a Paz de Vestfália, as guerras napoleônicas que resultaram no Congresso de Viena, a Grande Guerra que abriu caminho à frustrada Liga das Nações, assim como o sistema onusiano, após a segunda guerra de Trinta Anos. O chanceler russo Lavrov acaba de anunciar – o que é certamente a “vontade” de Putin – que a paz na Ucrânia só se dará com uma “nova ordem mundial”. O que o neoczar russo propõe, portanto, é uma “guerra perpétua”, até que a sua “representação” dessa nova ordem imperial venha a realizar-se como uma coisa em si e para si (com a ajuda de seu amigo Xi Jinping). Nenhum deles entrou em detalhes sobre como funcionaria essa ordem, diferente da atual, que emergiu na parte econômica em Bretton Woods, em 1944, e que se prolongou nas conferências de Ialta e de Potsdam, em 1945, que conformaram um novo arranjo oligárquico, baseado no direito de veto sobre qualquer decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas por parte das cinco grandes potências garantidoras da paz e da segurança internacional.

A humanidade não tem necessidade de uma nova paz imperial, baseada na coerção de Estados menores, e sim do pleno cumprimento dos dispositivos da Carta da ONU, assim como do respeito às normas mais elementares do Direito Internacional, princípios e valores que vêm sendo acatados pela diplomacia brasileira desde o século 19, e mais enfaticamente durante todo o século 20, a partir do Barão do Rio Branco, de Rui Barbosa, de Oswaldo Aranha, de Afonso Arinos e de San Tiago Dantas. Essa arquitetura da diplomacia brasileira começou a ruir em 2014, quando a presidente Dilma disse que não se pronunciaria sobre a invasão da Crimeia, por ser “assunto interno” à Ucrânia, como se a anexação de parte de um Estado soberano pudesse ser assim classificada. Hoje, ela parece perto de ruir mais um pouco.

Já não estamos mais no idealismo racionalista de Kant, ou na vontade metafísica de Schopenhauer, e sim na expressão mais crua do despotismo oriental de um Putin e de um Xi Jinping. Se a atual administração diplomática do Brasil pensa que uma nova ordem mundial pode ser criada com base nesse tipo de arranjo, mais conforme à violência primária dos impérios do que ao federalismo dos povos livres e no princípio da hospitalidade universal do mestre de Konigsberg, isto significa que estaríamos aderindo a concepções que já tinham ficado caducas desde o Iluminismo do século 18.

 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata e professor

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  1. A independência do Brasil dos fertilizantes russos pode ser alcançada com investimentos na produção nacional. Note-se que a Petrobras está em vias de vender uma usina de produção destes insumos agrícolas para os RUSSOS !!!

  2. Então, pela lógica do governo, podemos admitir legítimo a Holanda pleitear reocupar Pernambuco. Se der certo , periga o resto do país aderir e talvez saiamos do poço sem fim da mediocridade.

  3. Sim, a guerra será perpétua porque a Rússia pode se dar o luxo de travar uma guerra assim: seu povo pode sangrar sem parar desde que os amigos chinês e indiano assegurem as compras de hidrocarbonetos. A ver quanto tempo a Ucrânia consegue sangrar parecido e o ocidente estará disposto a financiar a sua defesa, enquanto vê ebulir socialmente a insatisfação inflacionária. Quanto à postura brasileira: é só mais um crime petista

  4. A atual diplomacia megalonanica propõe a paz da mesa de botequim, com a Ucrania cedendo "aquele terreno" (Criméia) depois de algumas cervejas.

    1. Ótima matéria. O governo petistas não tem noção do lado que estão partindo. Vai perder.

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