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Jogue como uma garota trans

Desde que a competição seja (e pareça) justa, o atleta pode ser aquilo que quiser
13.04.23

A Federação Internacional de Atletismo decidiu banir mulheres trans de competições oficiais. A World Rugby já tinha feito o mesmo e, no ano passado, a Federação Internacional de Natação (Fina) restringiu a participação a pessoas que completaram a transição de gênero até os 12 anos de idade — e que, portanto, não foram beneficiadas pelos hormônios masculinos enquanto cresciam. A medida atingiu em cheio a pretensão de Lia Thomas, que ficou famosa recentemente no Brasil pelas mãos de Eduardo Bolsonaro, de participar da Olimpíada de Paris.

Lia era William até 2019, quando começou sua terapia hormonal para ganhar formas femininas. Depois de passar a competir entre mulheres, quebrou uma série de recordes universitários e chegou a terminar uma prova 38 segundos à frente da segunda colocada. Em 2022, tornou-se a primeira atleta trans a ganhar um torneio universitário nos Estados Unidos, para a festa dos militantes da causa transexual e o protesto de quem enxergou injustiça em seu triunfo. É disso que se trata: competição justa.

Descobri, como uma pessoa trans, que é aceitável competir, mas não se atreva a ganhar”, constata a ciclista trans Michelle Dumaresq em declaração destacada pelo livro Sporting Gender (Rowman & Littlefield Publishers), da também mulher trans Joanna Harper. A autora, que esteve entre os 20 melhores maratonistas do Canadá, começou sua transição de gênero apenas aos 47 anos e passou a competir entre mulheres de sua faixa etária. O livro apresenta de forma sóbria a história do esporte feminino, desde suas restritas modalidades na antiguidade até a popularização a partir da década de 1930, quando a ciência esportiva começou a lidar com as atletas intersexuais, que Joanna trata como precursoras das trans.

Provavelmente como consequência de relações sexuais entre parentes, essas mulheres nasceram com DDS (distúrbios ou diferenças, na versão politicamente correta, de diferenciação sexual). Em resumo, são mulheres com níveis de testosterona acima da média e, portanto, potencialmente mais rápidas ou fortes, como a sul-africana Caster Semenya, bicampeã olímpica dos 800 metros, em 2012 e 2016.

Ao longo do século 20, os comitês esportivos se debruçaram sobre diversos casos de mulheres que levantaram suspeitas após se destacar em suas modalidades, por terem características físicas masculinas — uma consequência dos DDS. Havia algo na comparação de seus desempenhos com as concorrentes que não parecia justo.

É o que ocorre agora com as mulheres trans. Elas só conseguirão competir tranquilamente em meio a mulheres quando houver uma métrica de consenso para classificar essa competição como justa e, mais do que isso, quando a disputa soar legítima aos olhos das outras atletas e de quem assiste ao evento. Isso talvez nunca aconteça.

Por algum tempo, nas últimas duas décadas, os movimentos pelos diretos dos transexuais conseguiram impor a participação de atletas trans em competições femininas com base em argumentos como o de que o esporte é um direto humano. “Se for assim, é um direito para as mulheres também, de que não sejam desqualificadas ou humilhadas em campo”, rebate a filósofa Kathleen Stock no provocativo Material Girls (Fleet). Como conciliar os direitos desses dois grupos?

No caso das mulheres intersexuais, foram estipulados níveis máximos de testosterona, a serem controlados por meio de cirurgia ou terapias. Como sugere a recente decisão da Federação Internacional de Atletismo, a única forma de algo parecido acontecer com transexuais seria privá-los da testosterona durante o período de desenvolvimento de seus corpos — o que é proibido em diversos países, e com razão.

Em Irreversible Damage (Regnery Publishing), a jornalista Abigail Shrier chama a atenção para uma “epidemia trans” que assola meninas em países anglo-saxões e escandinavos. O ambiente criado para acolher os transexuais popularizou a mudança de gênero de tal forma que pessoas acometidas por depressão ou ansiedade, por exemplo, teriam passado a identificar seus problemas como disforia de gênero. Shrier conta histórias de jovens que, sugestionadas por um fenômeno de contágio social semelhante ao da anorexia, se arrependeram após passar por desgastantes terapias hormonais e até intervenções cirúrgicas para a retirada dos seios.

O caminho mais óbvio para contemplar a vontade dos atletas trans de competir parece ser a criação de categorias “abertas”, para abrigar todos aqueles que não se encaixarem nos grupos já existentes. Após restringir seus critérios para mulheres trans, a Fina estuda essa solução, que não deve contentar os movimentos transexuais mais radicais, mas pelo menos tende a preservar a essência da disputa esportiva.

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  1. Não gosto do paralelo entre intersexo e transexual, são modalidades completamente diferentes, com implicações também diferentes no esporte. A meu ver, para solucionar o problema trans no esporte apenas 1 de 2 formas: atletas trans competem em categoria do seu sexo biológico; cria-se uma categoria exclusiva para os atletas trans.

  2. Concordo plenamente Rodolfo. E, por favor, não me venham fala de exclusão afinal se já existe campeonato feminino e masculino, é porque aí existem diferenças físicas. E, tenho que confessar, quando vejo aquelas nadadoras olímpicas (em especial as alemãs) fico com medo até de chegar perto. Mas, por favor, é uma opinião de uma baixinha próxima do esquelético.

  3. As disputas femininas devem ser feitas pelas mulheres=mulheres, as disputas masculinas devem ser feitas pelos homens=homens. Que haja disputas específicas para os grupos que se vejam como outros tipos.

  4. É só criar o ateltisme, pronto resolvido, daí podem concorrer todos que queiram, inclusive homens e mulheres.

  5. O uso de categorias funciona muito bem nos esportes paraolímpicos e pode servir de guia para ajustar a questão de gênero no esporte.

    1. Esse artigo me rendeu uma enorme gargalhada, com o comentário do Luís Filho. Valeu! Pelo menos a gente esquece que há fome e outras desgraças no Brasil.

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