Foto: Gustavo Larcerda/DivulgaçãoA compra da Americanas, uma marca nascida em Niterói, em 1929, passou a unir uma marca sólida com administração ruim

As lições do escândalo

É de certa maneira irônico que o trio mais bem-sucedido do capitalismo brasileiro se veja agora em meio a uma “pedalada fiscal”
20.01.23

O colapso da Americanas gerou espanto no mercado financeiro, mas outras contabilidades duvidosas também deveriam importar, em especial, pois mexem no seu bolso.

Foi em 4 de abril de 1999 que os quatro ex-sócios do banco Garantia se juntaram a outro banqueiro, Paulo Guedes, para comprar o Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais, o Ibmec. Guedes, que era vice-presidente do Ibmec à época, ajudou a colocar em prática o plano, que era o sonho de Cláudio Haddad, o ex-sócio do Garantia. Por meio de uma reestruturação, a área de ensino do Ibmec foi separada e vendida ao grupo.

Alguns anos mais tarde, em 2004, o grupo comandado por Haddad, que incluía seus ex-sócios Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles, doaria a filial paulista do Ibmec para uma ONG, o Instituto Veris, que passaria a administrar a instituição hoje conhecida como Insper.

A doação tinha como intuito criar um ambiente de excelência na formação de carreiras envolvendo finanças, como administração e economia (posteriormente, engenharia).

Durante boa parte da sua existência, o Insper foi uma das instituições mais ativas em defesa de absurdos na contabilidade pública. Seu presidente, o economista Marcos Lisboa, carinhosamente apelidado pelos fãs de “Diabo Loiro“, tornou-se figura conhecida e respeitada na defesa de instituições fiscais sólidas.

Foi de lá que partiram argumentos acadêmicos para contrapor a “contabilidade criativa”, as pedaladas fiscais de Guido Mantega, Nelson Barbosa e Dilma Rousseff e a política de campeões nacionais de Coutinho, Mantega, Lula e Dilma, que fariam as 1.000 maiores empresas do país contraírem cerca de R$ 1,2 trilhão em empréstimos subsidiados via BNDES.

É de certa maneira irônico, portanto, que o trio mais bem-sucedido do capitalismo brasileiro, se veja agora em meio a uma “pedalada fiscal”. 

Se você esteve viajando nas últimas semanas, explico.

A Americanas, a companhia comprada pelo trio do Garantia, hoje conhecidos por “3G“, foi a primeira de inúmeras empreitadas do grupo na chamada economia real.

O grupo de banqueiros lutaria para transformar o banco de investimentos em algo além de um lugar que compra e vende dinheiro, mas sim em um lugar que investe em empresas e marcas sólidas, que vendem bens e serviços à população.

A compra da Americanas, uma marca nascida em Niterói, em 1929, foi um misto daquilo que ambos gostavam em uma empresa: marca sólida e administração ruim.

Quando comprou o controle da Americanas, Beto Sicupira dedicou-se a passar uma semana com Sam Walton no estado americano de Arkansas, aprendendo com o fundador do Walmart a gerir um negócio no varejo.

Beto geriu a Americanas no começo, mas os negócios do trio se diversificaram e a empresa passaria então a ser comandada por um dos inúmeros discípulos criados na cultura do Garantia.

Quase quatro décadas depois desta tomada do controle da empresa, a Americanas parecia ir de “vento em popa“, colhendo os frutos de uma operação física bem-sucedida e um e-commerce relevante (ainda que com prejuízos recorrentes, algo comum no varejo digital).

Até que, em agosto de 2022, a companhia decidiu mudar seu presidente.

Sérgio Rial, o chairman do Santander e da Vibra, foi o escolhido para ser o CEO.

Também banqueiro de origem, Rial conta que passou a estranhar como as notas de fornecedores iam e vinham de maneira “estranha“.

Apenas nove dias depois de se tornar o novo CEO, Sérgio Rial saiu da empresa, soltando um fato relevante em que a companhia alegava ter descoberto R$ 20 bilhões em “inconsistências contábeis“.

Talvez você não saiba, exceto pela mais famosa piada de contador, aquela em que um empresário pergunta ao seu contador: “Quanto é 2+2?“. No que o contador responde: “Quanto você quer que seja?“. A contabilidade é uma arte.

Em resumo, é uma arte das mais vilipendiadas da história brasileira. Tratamos mal por aqui uma questão fundamental no desenvolvimento de qualquer nação.

Mas há alguns fatos neste caso que chocam. O primeiro, claro, é o tamanho. A Americanas possuía até o dia 11 de janeiro deste ano, um valor de mercado de R$ 11 bilhões, além de um patrimônio líquido de R$ 15 bilhões.

O segundo diz respeito à auditoria. A empresa era auditada pela PwC, uma gigante com receita anual de US$ 50 bilhões, atualmente a terceira maior do mundo. No entanto, as contas foram aprovadas. Note que a PwC foi a auditora da Petrobras em meio ao esquema do petrolão, tendo rejeitado as contas da estatal por inconsistências nos números.

Em terceiro lugar: nenhum banco reparou que a Americanas tinha uma discrepância deste tamanho. Até então, a empresa era avaliada por agências de risco como mais segura que o governo brasileiro, que literalmente imprime dinheiro.

Há algumas pessoas sugerindo que Lemann, Beto e Telles também seriam detentores desse dom, uma vez que, somados, possuem um patrimônio de R$ 180 bilhões. Mas a legislação, claro, não é tão permissiva em misturar patrimônio de pessoas físicas e jurídicas. Dos três, resta saber se os homens mais ricos do país não notaram inconsistências, em especial, por estarem no conselho da companhia.

Não há dúvidas de que este caso ainda irá gerar uma repercussão de grande escala na maneira como o órgão regulador atua.

A CVM, que tem hoje o seu menor orçamento em treze anos, apesar de o mercado de capitais ter crescido inúmeras vezes nos últimos anos, pode ter tirado a sorte grande, afinal, o órgão que regula e supervisiona as regras envolvendo R$ 25 trilhões em recursos possui um orçamento de R$ 250 milhões, cerca de um terço do valor que a agência arrecada em taxas de empresas do mercado financeiro.

E essas questões serão também, claro, um palanque para políticos dos mais diversos atuarem, algumas vezes com razão.

Uma questão que permanecerá em aberto, porém, é a forma como encaramos a transparência dos dados e a nossa contabilidade.

A Americanas declarou que dívidas que ela possuía com os bancos eram “dívidas com fornecedores“. Essa simples mudança reduz o endividamento financeiro da companhia, impedindo o mercado de saber seu real estado de saúde.

Mas outras contabilidades do tipo já tiveram escala ainda maior e mais relevante, tendo sido “esquecidas“.

Quando Guido Mantega propôs abater investimentos do cálculo de superávit primário em 2011, maquiou a saúde fiscal. Parecia que o governo estava pagando sua dívida, quando na verdade a dívida subiu pois o governo gastava em estádios para a Copa e outras obras.

Quando Dilma Rousseff pressionou a Petrobras para não repassar os aumentos de preço da gasolina, levando a estatal a ter R$ 120 bilhões em prejuízos, a contabilidade criativa envolvia fraudar o índice de inflação.

Em suma, o índice de inflação é uma média ponderada entre diversos itens consumidos pela família, incluindo combustíveis. Quando a Petrobras pagava a conta, o preço não subia, não afetando portanto o Índice de Preços ao Consumidor Amplo, o IPCA.

Seu salário e aposentadoria subiram menos, pois a inflação foi maquiada.

Investimentos foram planejados levando em consideração números mentirosos.

E os casos não param por aí. As próprias pedaladas fiscais consistem em um esquema no qual o governo atrasou o pagamento de obrigações, levando os bancos públicos a pagar.

É proibido por lei que bancos públicos financiem gastos do governo, mas o problema não foi apenas esse. O governo maquiou com as pedaladas seu resultado primário, atrasando pagamentos e deixando o dinheiro em caixa para fechar o ano. Isso alterou projeções de juros, do custo do dinheiro e acabou levando à Grande Depressão brasileira.

Como na Americanas, todos estes eventos foram feitos para permitir que a situação parecesse melhor do que de fato era. Como na Americanas, a descoberta da realidade levou ao caos.

Por sorte, é improvável que, como Dilma, a Americanas leve 10 milhões de famílias para a miséria com sua contabilidade errada.

Uma contabilidade fraudulenta pode ter impactos extremamente relevantes para um país ou uma empresa.

(Nota: ainda não temos certeza do que de fato ocorreu na Americanas. Sabemos apenas que a CVM já havia alertado em 2017 que o método era questionável, mas não havia regras impondo determinado padrão contábil, portanto, tecnicamente o nome não seria fraude, apesar de, na prática, ser uma forma de enganar credores e investidores).

Por fim, é importante lembrar que nem sempre o problema está em um crime. Note que o caso da Petrobras manipulando preços não foi tecnicamente um crime.

Mas, olhando em retrospecto, alguns casos recentes chamam atenção.

Quando Paulo Guedes alterou a data de referência do cálculo do teto de gastos, que passou a ser contabilizado com o valor encerrado em dezembro e não mais nos doze meses encerrados em junho, ganhou uma folga de 1% a 2% no ano seguinte, algo como R$ 40 bilhões a mais para gastar.

Essa tática é bastante similar a trechos do livro Dobre seus lucros em 6 meses, o livro preferido de Marcel Telles. No livro, além de algumas excelentes dicas, o consultor americano Bob Fifer, dá uma dica, no mínimo, estranha: atrase seus pagamentos. Deixe de pagar em 30 dias e passe a pagar 60 dias, depois 90.

O caso funciona muito bem para a Ambev, que controla 70% do mercado de bebidas. Se um fornecedor não vender para a Ambev, é improvável que encontre outra cervejaria para comprar seus produtos.

O mesmo ocorre no governo, onde os “restos a pagar” são comuns. No caso do governo, isso acarreta em valores muito maiores cobrados em qualquer produto, já antecipando a distância entre a venda e o recebimento do valor.

Este caso, porém, não é ilegal (exceto quando há transição de governos).

Outro caso consistente por parte da gestão 3G, está na redução de investimentos para elevar dividendos.

Jorge Paulo Lemann já declarou em 2021 que acredita que um dos maiores erros de seu time foi focar demais no curto prazo.

Ele se referia a Kraft-Heinz, a empresa de alimentos que focou em melhorar a produção e distribuição, mas esqueceu de inovar.

A pressão por mais dividendos força a empresa a cortar de uma área que não irá gerar recursos no curto prazo: inovação.

Ao longo do último ano, além de uma alta inflacionária, os dividendos antecipados de estatais também melhoraram a aparência das contas públicas. Novamente: não é ilegal, mas confunde o cenário real.

É improvável que a Petrobras vá entregar R$ 60 bilhões ao governo neste ano. Este valor (3% do orçamento), equivale a metade do dinheiro livre que o governo gastou em 2022.

Há inúmeras lições neste caso, partindo do mais fundamental: evite idolatria, algo comum aos homens mais bem-sucedidos do capitalismo brasileiro. O respeito, claro, é máximo, mas dentro do razoável.

O segundo é: cheque os números. Depois que conferir, confira de novo.

Se algo parecer bom demais, desconfie.

Mas, como recomendação, não se preocupe com a 3G, eles saberão se virar e se for o caso (parece que sim), mudar o que der errado na sua cultura. Já o Brasil…

 

Felippe Hermes é jornalista

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  1. Saltando de brecha em brecha, sem cometer crimes, os nossos grandes capitalistas vão deixando um rastro de destruição enquanto acumulam riqueza e parasitam o estado e a sociedade que labora e produz.

  2. Sugiro revisar o texto. O trecho "O Insper foi uma das instituições mais ativas em defesa de absurdos na contabilidade publica" parece ser o contrário do que o autor pretendeu dizer. Não me lembro do Insper defender práticas erradas em contabilidade pública. Muito pelo contrário.

    1. Confuso mesmo. Deveria trocar o "em defesa de" por "em defesa contra"

    2. Parece não, é o contrário mesmo. Tb tive essa impressão.

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