Foto: Arquivo Federal AlemãoNo Brasil, já não se torna necessário que uma discussão política se alongue para que a carta do nazismo seja jogada na mesa

Será que é todo mundo nazista?

Prevista pela famosa Lei de Godwin, as analogias com Hitler grassam à direita e à esquerda do debate político brasileiro 
20.01.23

Quanto mais se prolongar uma discussão on-line, maior será a probabilidade de que alguém faça uma analogia com Hitler ou o nazismo. Assim reza a Lei de Analogias com o Nazismo, postulada no início dos anos 1990 pelo advogado americano Mike Godwin. Ela ficou mais conhecida apenas com o nome do autor: Lei de Godwin. Não se trata de uma lei que de fato rege a conversa política na internet: foi apenas uma forma esperta que Godwin encontrou para criticar a um vício recorrente do debate público. Com essa fórmula satírica, ele esperava coibir a disseminação de comparações hiperbólicas com o nazismo, que tendem a trivializar o horror do Holocausto. Em um artigo publicado em 1994 na revista Wired, ele celebrou o efeito da brincadeira nos meios de comunicação eletrônicos: “Com o tempo, as discussões em grupos de notícias e de debate mostraram uma incidência menor de comparações com o nazismo”.

Eram promissores esses tempos em que os primeiros internautas (como eram chamados então) inventavam expedientes humorísticos para disciplinar exageros em fóruns de discussão. O muro de Berlim caíra, a União Soviética havia se esfacelado, a democracia se consolidava na América Latina e a internet prometia o livre intercâmbio do conhecimento. Hoje, a emergência do chamado populismo de direita e da democracia iliberal parece ter revalidado a evocação do espectro nazista. O próprio Godwin tem sugerido que as analogias que sua lei ridicularizava seriam pertinentes para tratar de figuras como Donald Trump e Vladimir Putin. E não há incoerência aqui: ele jamais afirmou que comparações com Hitler eram sempre inválidas. 

Era inevitável que a destruição promovida pela Horda Canarinho no 8 de janeiro confirmasse a Lei de Godwin. E não é apenas no Twitter e no Facebook – as amebas gigantescas que fagocitaram os fóruns de discussão on-line dos anos 1990 – que isso se dá: o extremismo bolsonarista foi associado à suástica de forma mais ou menos direta em pronunciamentos das maiores autoridades da República. No discurso em que prometeu rigor na punição aos extremistas – “prisão não é colônia de férias” –, Alexandre de Moraes aludiu ao equívoco da “política de apaziguamento” adotada por França e Reino Unido e disse que isso não se repetiria no Brasil (me pergunto se, nesse paralelo, o papel de Churchill caberia a Lula ou ao próprio Moraes…). Em suas primeiras declarações depois do ataque à Brasília, Lula disse que os vândalos são nazistas (e stalinistas, mas isso foi um lapso que ele logo corrigiu). Alguns dias depois, porém, as qualificações do presidente para a turba que queria derrubá-lo do cargo amaciaram-se: nem caberia falar em golpe, disse Lula, pois os vândalos seriam apenas “pessoas alopradas” que não se conformaram com o resultado da eleição.

Lula afirmou ainda que os tais aloprados carecem de “senso de ridículo” – o que está correto. Aliás, talvez seja possível dizer que Godwin, com sua lei debochada, ambicionava restaurar o senso de ridículo – e de proporção histórica – que tantas vezes se perde no bate-boca político. Mas parece que os patriotas não ouviram falar da Lei de Godwin: nos sites e redes sociais bolsonaristas, correu que a polícia de Brasília havia montado um “campo de concentração” para prender os “manifestantes” do 8 de janeiro. Tratava-se na verdade de um ginásio de esportes onde foram abrigados provisoriamente os detidos na arruaça, pois o trabalho de indiciar individualmente mais de mil suspeitos toma certo tempo. Idosos e crianças foram liberados mais cedo. Em Auschwitz, seriam levados à câmara de gás. Não menciono o mais terrível dos campos de concentração nazistas por capricho: em uma página da direita bolsonarista no Twitter, vi uma postagem na qual fotos de famílias judias chegando a Auschwitz e de mulheres com filhos apreendidas pela polícia de Brasília foram colocadas lado a lado. A justaposição das duas imagens excede a mera trivialização do Holocausto: constitui um deboche com as vítimas do nazismo

Não é de hoje que o bolsonarismo pratica o reductio ad Hitlerum. No início da pandemia, um partidário de Jair Bolsonaro me mandou, por WhatsApp, uma caricatura de João Doria com o infame bigodinho do Führer e a braçadeira de suástica. A medidas de limitação do comércio e a obrigatoriedade do uso de máscaras, políticas adotadas pelo então governador de São Paulo, decerto seriam equivalentes às leis raciais do Terceiro Reich. E como esquecer o tuíte em que Abraham Weintraub, então ministro da Educação de Bolsonaro, equiparou uma operação contra fake news da Polícia Federal com a Kristallnacht – a noite de 1938 em que nazistas aterrorizaram bairros judeus, depredando lojas e sinagogas?

O simpatizante de Bolsonaro que porventura me leia estará bufando: “Mas a esquerda também chamava o Mito de nazista?”. O hipotético leitor tem razão: não só Bolsonaro, mas figuras timoratas e democráticas da oposição ao PT já foram chamadas de nazistas (ou, com maior frequência, de fascistas). Em 2012, depois que a polícia de São Paulo desocupou (com truculência, de acordo com alguns testemunhos) um terreno ocupado por famílias sem teto em São José dos Campos, Randolfe Rodrigues, atual líder do governo no Senado, foi ao Twitter sugerir que o governador do estado adotasse a suástica como símbolo de sua gestão. O governador era o hoje vice-presidente Geraldo Alckmin.

A Lei de Godwin talvez precisasse ser revisada em seus parâmetros temporais: em um contexto de guerra cultural acirrada, como o que se vê hoje no Brasil, já não se torna necessário que uma discussão política se alongue para que a carta do nazismo seja jogada na mesa. E como bem observou Godwin, essa carta raramente traz uma compreensão mais rica do problema debatido. Em geral, ela só serve para inflamar a discussão. 

No artigo de 1994, Mike Godwin caracterizava a analogia com o nazismo como um meme. Hoje, meme designa uma imagem, um texto curto ou um trecho de vídeo que se torna popular nas redes sociais. Meme é quase sempre uma besteira que “viraliza” na internet. No final do século XX, a palavra tinha um significado mais amplo. Em O Gene Egoísta, livro de 1976, o biólogo Richard Dawkins especulou sobre a existência de uma unidade básica de transmissão de ideias e valores – e a batizou de meme. Assim como o gene carrega informação biológica de uma geração a outra, o meme transmitiria ideias. Sem citar Dawkins, Godwin confere à palavra uma definição um pouco mais limitada: uma ideia capaz de pular de uma mente para a outra tal como um vírus contamina sucessivos corpos.

A analogia com o nazismo seria uma dessas ideias infecciosas. Godwin diz que criou sua famosa lei como um “contrameme“, uma forma bem-humorada de colocar a ideia em perspectiva e assim arrefecer sua propagação. Ele previa que, com a expansão da internet, seria preciso criar uma “engenharia memética” capaz de projetar novos contramemes para barrar os “memes ruins”. Era um projeto generoso, mas ingênuo. No fim das contas, o contrameme fracassou: os exemplos que recolhi neste texto demonstram que a falsa analogia com o nazismo segue vigorosa na internet (e fora dela, se é essa distinção ainda importa). E há vírus ideológicos mais nefastos circulando nas redes sociais. 

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. O autor "no cree em Las brujas". Completando, "pero que las hay, las hay." Bolsonaro adotou planos de controle político francamente de inspiração nazi-fascista. Primeiro, com a política de armamento facilitado e incentivado à população civil, segundo, com a expansão de clubes de tiro, terceiro, com o espetáculo de "motociatas". Mussolini e Hitler organizaram, ambos, núcleos armados e disciplinados em seus partidos. Os de Hitler foram as notórias SA e SS. Repare que não eram unidades militares.

  2. O recurso a analogia com o nazismo/fascismo/estalinismo/comunismo é uma forma preguiçosa de um ignorante majorar sua exposição com o mínimo de esforço dialético/intelectual, o que é perfeito para a forma de comunicação ultra-rápida e preguiçosa da internet

  3. Gostaria muito que esses artigos aqui do Antagonista+Crusoé estivessem nas grandes mídias deste país. Seriam de fato educativos para esse povo deixar de idolatrar políticos populistas; Reconhecerem a importância do que acontece ao longo da história para não cair novamente nas mesma armadilhas. Infelizmente o negócio é curtir o BBB e as novelas que mostram lindas modelos fazendo papel de faveladas, ops, moradoras de Comunidades do Rio de Janeiro.

  4. De boas idéias o inferno está cheio. Mas vamos lá, já que tenho este espaço. Vamos criar algum limite para os hyperlinks ou fazer o retorno ficar cada vez mais lento após um determinado número de hyperlinks clicado? De alguma forma similar isto já é adotado por um aplicativo famoso, após alguns massacres que ocorreram após falsas delações de crimes hediondos.

  5. E é uma miséria que em vez de usarem tanto a expressão, as pessoas não se informem sobre como o nazismo se instalou. Seria útil saber que foi desenvolvido com propaganda, que os jovens foram a grande massa de manobra (e hoje a juventude é considerada tão ‘perfeita’ em suas demandas…). Enfim, nazismo é uma coisa terrível que foi feita por gente mesmo e de tempos em tempos a humanidade se mete em uma carnificina cheia de “justificativas”.

  6. Todo mundo é muita gente. O protoditador sem querer (querendo) vai pelo mesmo caminho do Nacional Socialismo de controle das massas pela propaganda. O mito da direita, o embusteiro, o mocorongo selvagem, falso militar indicou comunistas e petistas para Defesa, PGR e STF. Fechou sendo solidário ao homólogo désposta genocida russo. Ajeitou para o chefe dele, o désposta burguês cachaçudo, o Líder "desse país", a Povolândia.

    1. Agamenon M Pedreira, diria que esse país, que tem nome, está muito mais Kremlinalizado que Nazificado, apesar das coincidências Nazi afetivas como a supressão da Bandeira Nacional pela bandeira do Partido dos Trabalhadores. A base Nazi é o Marxismo: luta dos trabalhadores contra os burgueses sem distinção de religião.

Mais notícias
Assine agora
TOPO