Dano colateral

Dia 6 de janeiro, sexta-feira, o caminhoneiro Nilton da Silva, de 43 anos, chegou à casa de sua mãe em Apucarana, município localizado no centro-norte do estado do Paraná, e encontrou as três sobrinhas. Ao perguntar por que as filhas das irmãs estavam com a avó, recebeu como resposta que Edineia, Niceia e o cunhado Noel haviam deixado as “crianças” lá e viajado para Brasília. Dois dias depois, no domingo, 8, o paranaense começou a acompanhar o noticiário na televisão que mostrava a violenta invasão das sedes dos Poderes por uma horda de manifestantes radicais. Preocupado com o que via, e imaginando que as irmãs e o cunhado pudessem estar no meio do quebra-quebra, ele contou que ligou para Edineia para saber onde o grupo estava. A irmã, então, tranquilizou Nilton dizendo que não estaria na Esplanada, mas no QG do Exército, a 8,6 quilômetros de distância do local dos ataques, e que logo pegariam o ônibus de volta para Apucarana. Eles só voltariam a se falar no dia seguinte.

Na segunda-feira, 9, Nilton recebeu a primeira ligação de Edineia que relatava que ela, seu marido e irmã seriam levados pela Polícia Federal ao ginásio da Academia Nacional da Polícia (ANP), para onde foram encaminhados todos os detidos que se encontravam no acampamento do QG do Exército. Ainda assim, Edineia disse ao irmão que ficasse despreocupado, que só iriam para colher digitais para ver quem estaria envolvido nos ataques e que seriam mandados de volta para a casa em seguida. “Eu falei para ela que era bom que eles fossem liberados mesmo porque a mãe e o pai tinham ficado sozinhos com os filhos deles e eu tinha que trabalhar”, relembra Nilton, em entrevista exclusiva à Crusoé.

Lavradores no Paraná, com renda média de R$ 1.000 cada, Niceia Aparecida da Silva Oliveira, 45 anos, Edineia Fátima da Silva Sérgio, 42 anos e Noel de Oliveira, 44 anos, foram presos pela Polícia Federal pelos ataques criminosos às sedes dos Três Poderes no dia seguinte aos violentos atos de vandalismo na Esplanada dos Ministérios. “Quando deu umas cinco horas da tarde elas já me ligaram chorando dizendo que teríamos que pagar advogado. Fui no meu patrão e pedi um dinheiro adiantado, uns R$ 1.500 reais, porque era ‘quinhentão’ para o advogado por cada pessoa. Na terça-feira a minha irmã Niceia me ligou chorando pedindo ‘cuida dos meus filhos porque estamos sendo presos’”, conta o caminhoneiro, sem conseguir segurar as lágrimas.

Distante 1.199 km de Brasília, Nilton se vê impotente diante da situação dos familiares e se revolta pela situação que, segundo ele, as irmãs e o cunhado, acabaram envolvidos.

“Acabaram com a minha família, que não fez nada. É isso que está me revoltando. São pessoas de bem no coração que foram usadas, porque elas foram na ideia dos outros. Eles foram manipulados. Agora estão lá a minha mãe, que é doente, e meu pai que teve derrame, sozinhos.”

Niceia, Edineia e Noel são parte de um grupo de 20 pessoas das 1.407 presas cujos depoimentos à Polícia Federal a Crusoé teve acesso exclusivo. São zeladores, eletricistas, costureiras, professores e estudantes com renda média mensal de R$ 1.800, vindos de Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul em ônibus fretados. Alguns, viajaram de graça. Outros, contribuíram com a passagem. Nenhum revela quem financiou o transporte até Brasília para participar do ataque às sedes do Poderes e à democracia no dia 8 de janeiro.

Na quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal liberou a lista das pessoas que receberam liberdade mediante cautelares e as que tiveram suas prisões convertidas em preventiva. Noel, o cunhado de Nilton, foi libertado. Edineia, a irmã, vai continuar presa. Sobre Nicéia, o STF ainda não se pronunciou.

“Fizeram lavagem cerebral“

Até as eleições de 2022, a rotina de Maria do Carmo de Oliveira Fernandes, 57 anos, girava em torno da sua máquina de costura e da família. Foi a partir da campanha eleitoral, que a costureira de Sorocaba, no interior de São Paulo, começou a fazer parte de grupos de WhatsApp bolsonaristas nos quais recebia mensagens contra uma possível eleição do então candidato Lula. Na família de quatro pessoas — ela, uma filha, um filho e o marido — Maria do Carmo é a única apoiadora do ex-presidente Jair Bolsonaro. A contragosto do marido, o pedreiro José Luís Roberto Rodrigues Fernandes passou a frequentar o acampamento em frente ao Tiro de Guerra de Sorocaba, na Vila Hortência. Era o esposo quem a levava e buscava diariamente de carro, um Fiat Uno prata, ano 1997, no trajeto de pouco mais de 10 minutos.

“Ela chegou na sexta-feira (6 de janeiro) falando que ela iria para Brasília. Eu não me meti porque a minha mãe é daquele tipo ‘eu sou maior de idade, vacinada, eu me governo’. Nem se meu pai falasse ela ia deixar de fazer o que ela julga estar certo“, conta Talici Fernandes, filha de Maria do Carmo. “Até enquanto ela estava indo somente no quartel, que ela tinha os posicionamentos dela, até aí ninguém nunca se meteu. O agravante foi agora.” Foi através de uma ligação telefônica de uma pessoa que também viajou com a costureira que o marido de Maria recebeu a notícia de que ela havia sido presa em Brasília por supostamente ter participado da invasão e vandalismo nos prédios da Congresso Nacional, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal.

“Nós descobrimos que ela foi presa na segunda-feira, 9. Eu trabalho em supermercado. Eu passo 12 horas dentro do trabalho. Quando eu cheguei em casa, o meu pai contou que ela estava num estádio, em que eles (a Polícia Federal) colocaram todo mundo. Enquanto isso ela conseguiu (se comunicar) porque eles estavam com os celulares“, relembra Talici que conta que sua mãe usou o aparelho de uma acompanhante e só assim conseguiu ligar para o marido para avisar da prisão.

Talici se diz frustrada e de mãos atadas. A família não tem como arcar com os honorários de um advogado para a mãe. Dos companheiros de acampamento bolsonarista não veio nenhuma ajuda financeira — os advogados patriotas indicados que supostamente trabalhariam pro bono, ao saber da situação passavam a cobrar de R$ 15 mil a R$ 20 mil para assumir a defesa da costureira.

“Teve um major que falou para mandar mensagem que ele iria encaminhar o advogado e diziam que não ia ter custo nenhum, mas aí começa ‘olha é 20 mil para entrar no caso, para a primeira etapa. Se tiver a segunda, é mais outro valor’. Vamos tirar de onde? Não tem condição. São apoiadores que não estão se apoiando em nada. Na hora de incitar, todo mundo está junto, no oba-oba está todo mundo junto. Mas, na hora que começa a apertar, as pessoas começam a sair fora“, desabafa a filha de Maria de Fátima.

Assim como Nilton, Talici acredita que a mãe foi manipulada e que “com certeza tem gente muito grande por trás“. Essa é a mesma impressão que procuradores-gerais de Justiça de São Paulo, Santa Catarina e Espírito Santo, que no dia dos ataques em Brasília avisaram ao ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que investigações estaduais haviam a participação de empresários no financiamento de atos golpistas. “Eu acredito que a minha mãe foi usada. Acredito que na maioria eles fizeram uma lavagem cerebral tão grande que as pessoas já não pensavam por si. Não é possível você se levar por uma coisa dessa. Muitas vezes, você é corrompido por uma massa maior que é corrupta e vai. Eles estão alienados“, afirma Talici à reportagem (ouça abaixo o áudio da conversa).

Nilton compartilha do pensamento da filha de Maria de Fátima. Para ele, os familiares foram vítimas. “É uma injustiça. Eles foram usados. A Edineia e a Niceia têm até a 4ª série. O povo entra na cabeça deles. O meu cunhado, quando faleceu, deixou um pouquinho de coisas, um tratorzinho, para a Edineia. Ficavam falando para ela que se o Lula ganhasse ela ia perder tudo. Mas são as pessoas bolsonaristas, que têm sítio e fazenda, que ficam gravadas na cabeça dos outros. Eu não sei se eu sinto raiva das minhas irmãs, por serem tão ingênuas, ou se sinto ódio da pessoa que incentivou isso.”

“Nós não somos golpistas”

Se a atuação política de lavradores do interior do Paraná parece improvável, o mesmo não se pode dizer que militares reformados que participaram dos atos de 8 de janeiro. Nader Luís Martins, 60, é um capitão aposentado do Exército. Bolsonarista de primeira hora, o militar desembarcou em Brasília, vindo de Curitiba, no domingo, 8, às 9 horas da manhã. Em seu depoimento à Polícia Federal, ele confessou que entrou no Palácio do Planalto, uma das sedes dos Três Poderes assaltada por vândalos bolsonaristas.

O militar paranaense, cuja renda mensal é de R$ 12 mil, informou que ele mesmo custeou a viagem à capital federal. À PF, ao ser perguntado se havia incentivado as manifestações antidemocráticas, ele negou. E mentiu. Em sua conta do Facebook, Nader registrou em vídeo a sua chegada a Brasília, na entrada do Setor Militar Urbano, onde o acampamento bolsonarista estava instalado. Em sua postagem, o militar incitou e apoiou o movimento golpista. “Bora povo brasileiro causar a desordem na cidade. Com desordem e tumulto vira o caos. Somente assim será acionada a GLO. Cantar em frente ao quartel não dá mais. Povo nas refinarias e nas ruas, para ônibus, carros, vamos em frente. Trava tudo. Liberdade“, escreveu ele horas antes de se dirigir ao prédio do Palácio do Planalto, junto com a massa golpista.

Em Curitiba, Rosane Marmitt, esposa do capitão aposentado, acompanhava o marido no acampamento em frente ao Comando da 5ª Região Militar do Exército, conhecido como Forte do Pinheirinho. Em coro com os “patriotas” defendia que as eleições foram fraudadas e pediam intervenção militar. Para ela, é tudo culpa da esquerda. “Nós não somos golpistas! Foi tudo orquestrado pela esquerda. Se a gente imaginasse que era uma armadilha a gente não teria ido. A gente não faz o que as pessoas estão nos acusando“, disse Rosane a O Antagonista. “Vamos ser sinceros, já tinha gente lá. As imagens falam por si só. Só ver as imagens.”

Nas redes sociais Rosane, que também é apoiadora de Jair Bolsonaro, defendia o voto impresso auditável e replicava postagens contra Lula, a primeira-dama Janja e até contra a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, a quem chamou de “múmia“. “A gente não reconhece mesmo (a eleição do presidente Lula), mas tem que aceitar. A gente não queria a volta do Lula ao governo, mas era o que tinha, os dois. Não tinha uma terceira opção. Diante do quadro, o menos pior seria apoiar Bolsonaro“, explicou a esposa do militar preso. No dia 10 de janeiro, Nader postou um vídeo feito na Academia Nacional de Polícia, onde todos os radicais presos foram levados pela Polícia Federal. Rosane acreditava que ele seria liberado após a audiência de custódia. Não foi. “Estou esperando que o melhor aconteça que ele seja solto o mais breve possível. O nosso advogado vai entrar com pedidos de habeas corpus.” Após o contato da reportagem, a postagem de Nader no Facebook foi apagada.

Casos como os relatados nesta reportagem de Crusoé se repetem às dezenas entre os cerca de 1,5 mil presos, classificados previamente e genericamente por Alexandre de Moraes como “terroristas“. A primeira denúncia apresentada esta semana pela PGR contra um pequeno grupo de detidos, porém, não inclui o tipo penal, considerando que a lei não prevê motivação política em atos de terror no Brasil — obra da esquerda que, na aprovação da lei anos atrás, temia ser enquadrada por invasões de propriedades rurais e urbanas, além de protestos violentos. Para além do debate jurídico em torno da individualização das condutas de cada manifestantes, condição básica para a instrução de um processo, as autoridades precisam se debruçar de forma urgente sobre o fenômeno do fanatismo político — seja de direita ou de esquerda — e suas consequências deletérias para o conjunto da sociedade, ainda piores que a destruição de prédios públicos e obras de arte.