Montagem: Matheus Castro/CrusoéSicupira, Lemman e Telles (da esq. para dir.): estratégia de "proprietário-operador"

Do toque de Midas ao castigo de Apolo

Mítica do trio formado por Lemann, Sicupira e Telles acabou. Trabalhadores, credores e investidores serão penalizados pela "imperícia" contábil
20.01.23

O rei Midas é um personagem conhecido da mitologia grega agraciado (ou amaldiçoado) pelo deus Dionísio com a capacidade de transformar em ouro tudo o que tocava. Não por acaso, os três fundadores da 3G Capital — Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Herrmann Telles — foram considerados, até bem pouco tempo, uma versão contemporânea da lenda grega, colecionando histórias de sucesso e riqueza por onde passavam.

A 3G é uma firma de investimentos global com uma postura voltada para aplicações de longo prazo e uma estratégia definida como “proprietário-operador” nos negócios investidos. A definição é da própria empresa. Sua intenção é demonstrar o processo de aquisição e controle do grupo sobre as companhias adquiridas.

Desde 2004, data da evolução do family office (uma estrutura financeira para gerir os recursos de famílias muito ricas) de Lemann, Sicupira e Telles para a 3G, a firma adquiriu marcas de peso pelo mundo, como Kraft-Heinz, Burger King e AB InBev, além de atuar como acionista majoritária em empresas nacionais, como Ambev e Americanas. Colecionando histórias de sucesso para acionistas e elevando os lucros das empresas sob a chancela do grupo por meio de cortes de custos agressivos.

Essa característica é anterior à 3G, mas marcante no grupo. À época da aquisição da Americanas, em 1982, o trio era sócio no banco Garantia e, após a compra da varejista, Sicupira foi encarregado do “choque de gestão” na empresa adquirida. Poucos meses após a chegada nas Lojas Americanas, 6.500 pessoas foram demitidas, o equivalente a 40% dos funcionários, além de 32 dos 35 diretores que teriam reclamado da mudança no sistema de bonificação, considerado pouco desafiador pelo novo chefe. A estratégia também foi adotada por Telles, à frente da Brahma, anos depois. E assim a mitologia corporativa brasileira começava a reforçar as qualidades do trio que transformava negócios em ouro.

No dia 11 de janeiro deste ano, porém, a mítica deu lugar ao que pode vir a ser o maior escândalo contábil do mundo corporativo brasileiro. O recém-empossado CEO da Americanas, Sérgio Rial, deixou a cadeira de comando da varejista após nove dias indicando “inconsistências contábeis” da ordem de R$ 20 bilhões como motivação para a decisão. De acordo com Rial, a empresa teria contabilizado de forma indevida uma operação conhecida comumente como “risco sacado“, que envolve a antecipação de recebíveis aos fornecedores da companhia por uma linha de crédito aberta por um banco.

O financiamento da conta “fornecedores” desta forma não é incomum entre as varejistas, o “erro“, no entanto, estaria na forma de lançamento desses valores nos livros contábeis. Segundo o que ficou entendido pelas explicações fornecidas pelo ex-CEO, o valor pago a título de juros pelo “risco sacado” era abatido na linha “fornecedores” em vez de figurar no campo “despesa financeira“, o que impacta diretamente o resultado da empresa. Assim, esse custo ficava “escondido” no balanço e produzia um lucro superestimado — o que acabava gerando distorções que beneficiavam a diretoria como um todo, com o pagamento de bônus de eficiência. A estimativa é que o “erro” tenha sido cometido reiteradamente por, pelo menos, cinco anos. Na Faria Lima, conhecida avenida que abriga boa parte do mercado financeiro brasileiro, a avaliação mais comum indica algo em torno de 10 anos.

O trio não atuava diretamente no cotidiano da operação Americanas há algum tempo, mas eram os controladores da empresa durante a maior parte do período em que as “inconsistências” teriam acontecido. Além disso, Beto Sicupira ainda consta como membro no conselho de administração da varejista, junto com Paulo Alberto Lemann (filho de Jorge Paulo) e Roberto Thompson (sócio e conselheiro do trio na 3G).

Apesar da mítica de sucesso, a história da 3G Capital tem episódios que deveriam ter servido de alerta aos mais atentos. Logo após a aquisição da América Latina Logística (ALL) pela Rumo, em 2015, os balanços dos dois anos anteriores da empresa (quando o trio ainda tinha o controle da companhia) foram republicados reclassificando, entre outros itens, a linha de dívidas com fornecedores.

Pouco tempo depois, em 2021, a Kraft-Heinz pagou US$ 62 milhões em acordo com a SEC, que é a versão americana da Comissão de Valores Mobiliários brasileira, para encerrar uma investigação sobre erros contábeis que indicavam descontos inexistentes ou inflados na conta fornecedores durante, pelo menos, três anos

As coincidências não param por aí. No livro de cabeceira de Telles (pelo menos de acordo com a capa da publicação), um dos capítulos defende o atraso no pagamento a fornecedores como um método tido como fácil de favorecer o balanço da empresa. “Nunca pague uma contra até que o fornecedor pergunte por ela pelo menos duas vezes. Certos fornecedores chegam a levar até dois anos para reclamar o pagamento de uma conta“, aconselha o texto

Neste momento, precisamos avançar também na narrativa do rei Midas, aquele do toque de ouro. Pois bem, pouco depois de ter atendido o pedido de transformar tudo em ouro ao encostar nos objetos, o soberano se deu conta de que morreria de fome em função da característica peculiar e teve o “dom” retirado. Anos depois, conta-se que Midas foi convidado a julgar uma disputa musical em que o deus Apolo era um dos competidores. Tendo votado contra a divindade, foi castigado e teve as orelhas transformadas em orelhas de burro por não ter reconhecido a qualidade da apresentação. As orelhas o acompanhariam até a morte.

Voltando aos Midas contemporâneos, o momento atual talvez marque o início da segunda fase do mito no paralelo com a trajetória do trio. A tragédia é pública e tem contestações judiciais, desconfiança da Faria Lima e até ataques pelo mercado financeiro. Na ação movida pelo BTG contra a Americanas para buscar o bloqueio dos recursos da varejista na instituição financeira, os advogados do banco não pouparam agressões.

Os três homens mais ricos do Brasil (com patrimônio avaliado em R$ 180 bilhões), ungidos como uma espécie de semideuses do capitalismo mundial ‘do bem’, são pegos com a mão no caixa daquela que, desde 1982, é uma das principais companhias do trio“, diz o agravo de instrumento que pedia a suspensão da liminar que protegia a Americanas. Os advogados avançam ao definir a situação como a “maior fraude corporativa de que se tem notícia na história do país“. E concluem apontando ao juiz que a proteção da varejista contra os credores é um benefício ao qual a Americanas não teria direito. “É o fraudador travestindo-se como o menino da antiga anedota forense, que, após matar o pai e a mãe, pede clemência aos jurados por ser órfão.

A dúvida sobre a consciência do trio acerca das “inconsistências contábeis” não demorou a se refletir naquela que pode ser considerada a joia da coroa dos investimentos da 3G Capital, a Ambev. Desde o início da crise das Americanas, as ações da empresa chegaram a se desvalorizar mais de 7%, o equivalente a uma destruição de valor da ordem de R$ 18 bilhões, em um movimento claro do mercado de retirada do prêmio que a empresa carregava pelos sócios que garantiriam uma governança lucrativa. Além disso, também começam as apostas de analistas contra a empresa e com recomendação de venda da ação da cervejeira.

Quanto à Americanas, a situação tem se deteriorado em um velocidade antecipada por poucos. Enquanto fechávamos esta edição, a empresa divulgou fato relevante expressando preocupação com o caixa insuficiente da companhia para honrar compromissos de curto prazo e alertando que “a administração está trabalhando com a possibilidade de, nos próximos dias, ou potencialmente nas próximas horas, aprovar o ajuizamento, em caráter de urgência, de pedido de recuperação judicial”.

Há uma disputa acirrada entre os credores para tentar reduzir os prejuízos com a provável recuperação judicial ou, até mesmo, um processo de falência. Seja qual for o desfecho, há uma certeza sobre os impactos: trabalhadores, credores e investidores da empresa serão penalizados pela “imperícia” contábil (ou seja lá o nome que a manobra receba nos próximos meses).

Para o trio de bilionários, que um dia ocupou lugar no Olimpo do mercado financeiro nacional e internacional, restam a opção de salvar a empresa, empregos, credores e investidores injetando dinheiro do próprio bolso e tentar preservar a aura mítica; ou abandonar a varejista em um processo lento e doloroso até a quebra derradeira — o castigo de Apolo.

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500
  1. A equação do Rial não fecha. Quem paga os juros é o fornecedor que antecipa seus direitos sobre a compradora. A compradora paga o valor nominal da fatura para quem se torna o detentor do crédito. Se a Americanas tem um déficit de 20bi, infere-se que haja contabilidade paralela e nesta constam direitos e obrigações. Para saber a real situação da Americanas os balanços oficiais e extra-oficiais precisam ser consolidados. Fraude combina com falência.

  2. Eles reduzem o quadro de funcionários com o mesmo intuito que "ocultam" operações contábeis: criar resultado positivo a qualquer preço e se remunerar como excelentes gestores. Por isso as lojas são uma verdadeira zona.

  3. Como alguém pode valorizar um livro q diz q se deve atrasar pagamento a credores? Tlvz isso só deva ocorrer com corda no pescoço. Q povo doido! e esperto…

  4. "Não administre o que não possa controlar". O gigantismo gera incompetência culposa ou dolosa. Não acredito em dolo dos acionistas da 3G. São agressivos, mas não são "picaretas".

    1. Ah tá, cada um faz a leitura que julga conveniente, mas uma batida d'olhos na reportagem deixa claro que a agressividade deles se ampara na ilegalidade, ou no pop, na picaretagem. Tem gente no Twiter por exemplo que acha o Eike, um fantástico gestor; note bem, aquele que perdeu tudo por falsidade contábil e estelionato, é considerado um excelente gestor. Deve ter ser sido discípulo do trio.

  5. A questão das inconsistências contábeis está muito mal explicada. Se só se tratarse de uma reclassificação de contas entre fornecedores e dívida bancária não haveria um aumento de passivo. Segundo as notícias até agora, parece que existem também passivos ocultos, o qual não tem outro nome que fraude contábil. Vamos esperar esclarecimentos. Ao Srs acionistas de referência, caberia se pronunciar…

  6. Três abonivais sanguessugas. Trabalhadores em regime de semiescravidao. Não cumprir meta? RUA. São o servidores tipo laranja: suga até o fim, depois joga o bagaço fora e contratar novas laranjas. REPUGNANTE. MISERÁVEIS PARASITAS.

  7. É uma surpresa para mim que as Lojas Americanas estão quebrando por maracutaias e não por pura ruindade: desorganização, artigos muito ruins, falta de atenção aos clientes, funcionários mal treinados, filas enormes. Eu poderia estender-me aqui por mais algumas linhas, mas para que? Tenho certeza que muitos aqui já passaram pela dolorosa experiência de entrar nessas lojas. Sugiro uma mudança de nome para Lojas Sul-americanas. MS

    1. A desordem dos administrardes atinge toda a empresa. Funcionários demitidos, desordem nos produtos…efeito cascata.

  8. Gênios capitalistas com telhado de vidro e esqueletos no armário? No Brasil? Ah, vá, não diga! Na terra dos Batistas e Eike, o percurso do trio ternura não surpreende ninguém. Tampouco o seu fim, que oxalá seja ruidoso e ruinoso!

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