Divulgação Amazon PrimeRicardo Darín, no filme Argentina, 1985: sátrapas foram condenados e apenados

Vizinhos ensinam, mas Brasil não aprende

Brasil faz ouvidos de mercador para lições recentes dadas em Venezuela, Argentina e Chile
20.01.23

Nos anos 70, as relações entre os militares que mandavam no Brasil em seu penúltimo governo, de Ernesto Geisel, e os Estados Unidos, que patrocinaram o golpe instalado nestes tristes trópicos, em 1964, estremeceram-se por conta do acordo nuclear que firmamos com a Alemanha. Até então reinava o princípio da submissão da frase do chanceler Juracy Magalhães: “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”.

A política externa do chanceler Azeredo da Silveira, o Silveirinha, permitiu lances de autonomia ousada, caso do acordo nuclear Brasil-Alemanha para a construção da usina de geração elétrica de Angra dos Reis, RJ. Um dos mais fieis aliados americanos era a Venezuela, que desde a derrubada da ditadura militar pela geração de Rómulo Betancourt, fazia jus à piada segundo a qual quando o titular da Casa Branca se resfriava, seu aliado em Miraflores espirrava. O autor destas linhas entrevistou o adeco Carlos Andrés Pérez justamente quando essa anedota perdeu o sentido. O presidente social-democrata da AD não deixou por menos: aproveitou-se de nossa entrevista para apoiar o vizinho amazônico na pendenga contra a potência da margem norte do Rio Grande.

Minhas viagens a Maiquetía serviam para que me inteirasse do melhor cinema cubano da época, caso do genial La Última Cena, de Tomás Guiérrez Alea, proibido ao sul do Oiapoque. E também a conviver com os exilados da ditadura chilena de Pinochet, o que rendia papos instrutivos sobre Bolívar e outros ídolos hispano-americanos. Gente do porte de um Rodomiro Tomic e de um Patrício Alwin, primeiro a ser eleito presidente após a queda da ditadura.

Não demorou para a situação se inverter: a ditadura caiu em Brasília e sucessivos golpes do coronel Hugo Chávez terminaram instalando em Caracas um regime militar de polo oposto, castro-comunista. Há menos de um mês foi derrubada uma tentativa de golpe por aqui numa eleição que alijou do poder um extremista de direita e o substituiu por um correligionário do sucessor de Chávez, Nicolás Maduro. Esse passou a depender dos russos e a gozar da simpatia descarada dos populistas de esquerda ao sul das ricas jazidas de óleo cru de Maracaibo. A Venezuela de gastadora estroina de petrodólares passou a ser dependente de rublos.

Na balança implacável da política latino-americana, antes de se tornarem indesejáveis nas ditaduras de Chávez e Maduro, os chilenos voltaram a disputar eleições democráticas em sua pátria. E o Brasil tornou-se regido pela conveniente Constituição de 1988. Três anos antes de sua prorrogação, embarquei para Ezeiza para cobrir ainda para o Jornal do Brasil o julgamento dos comandantes militares da ditadura argentina, responsáveis pela vitória do selecionado de César Menotti num dos muitos vergonhosos campeonatos mundiais comprados à Fifa. E também da derrota militar para o Reino Unido pela posse das Malvinas/Falklands e pelas torturas inomináveis dos inimigos políticos da esquerda soviética ou peronista. Ali tive a oportunidade incrível de entrevistar um dos maiores gênios literários do século 20, o portenho Jorge Luís Borges, autor de História Universal da Infâmia. E de ter a companhia honrosa do grande escritor e jornalista gaúcho Flavio Tavares, cujo livro, Memórias do Esquecimento, foi definido por outro prosador de ponta, o portenho Ernesto Sábato, o Recordação da Casa dos Mortos (do gênio russo Fiodor Dostoievski) das ditaduras militares de nosso subcontinente. Com rigor profissional, só choramos ao acabar a narrativa da guerrilheira que teve uma filha na cela, assistida por colegas de cadeia: “Teresa, la que nació presa”.

Durante todo o julgamento, acompanhamos o trabalho competente e heroico dos promotores Julio Strassera e Luis Morano Ocampo. Graças a eles, temos a oportunidade de acompanhar o resultado de seu competente trabalho levando os três membros da junta militar que mandou e desmandou no vizinho ao sul de 1976 a 1983. O trio de sátrapas foi condenado e apenado, ao contrário dos torturadores brasileiros, que tiveram oportunidade de em liberdade mofar de suas vítimas. Dentre eles, o ídolo maior do capitão Jair Messias Bolsonaro, coronel Brilhante Ustra, levou à extrema degradação humana a guerrilheira Dilma Rousseff, torturando-a, pessoalmente, na presença da filha de cinco anos.

Pode-se questionar se a anistia mútua que encerrou o capítulo atroz da ditadura militar, cujo auge ocorreu exatamente quando colaborava com os argentinos Videla, Massera e Agosti na Operação Condor. Assim como com nazistóide chileno Augusto Pinochet, em cuja equipe de economistas atuou o ex-ministro da Fazenda de Bolsonaro, Paulo Guedes. Os chefões foram processados e tiveram seus crimes expostos à opinião pública mundial. A memória sangrenta dos cárceres nos pampas ao sul do Chuí inspira o filme Argentina, 1985, produzido em 2022 e dirigido por Gonzalo Mitre. E com o protagonismo do maior ator de lá, Ricardo Darín. Exibido na Netflix, venceu o Globo de Ouro na categoria filme internacional há uma semana.

Ao contrário da democracia à brasileira, que anistiou os dois lados da guerra suja dos anos 1970 para manter a tradição conciliadora de Bernardo Vasconcelos a Tancredo Neves e dos ditadores venezuelanos que mantiveram a ditadura militar com discurso filocastrista, os argentinos puniram seus criminosos estrelados com rigor. O Chile mantém-se próspero, mas a Venezuela caiu na miséria total, assim como a Argentina. E o Brasil, como todos sabemos, caiu no pêndulo fatalista e vergonhoso da miséria ignorada pela direita assassina e pela esquerda leniente com os golpistas que entram e saem de nossa administração pública tratando-a como uma fossa sórdida e fétida de uma elite corrupta, inepta, incompetente, inclemente e impune de uma asquerosa sociedade de castas insaciáveis.

 

Josê Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor

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  1. Neumanne já perdeu a moral faz tempo, deixei de ler quando escrevia no Estadão, nem sei se continua, pois não assino mais este velho jornal que já foi muito combativo e se vendeu tendencioso. No artigo até que foi bem até o segundo parágrafo, depois só autopromoção e afirmações que possivelmente não consegue sustentar.

  2. ....o pior de tudo é que isso aí é verdade; nunca muda e nós brasileiros já nascemos conformados; aqueles poucos que ousam confrontar cedo ou tarde ou são destruídos ou milagrosamente sobrevivem: "uma andorinha não faz verão!!!".

  3. Quem sabe o Brasil aprenderá quando tiver uma educação de qualidade em todas as etapas? Um povo pensante pode mudar esse cenário.

  4. O que é adeco? Procurei e não achei. No mais, vejo Muito sangen nos olhos do autor. O que tem a ver o Guedes, economista, com o regime do Chile, membro da OCDE com um PIB per capita muito superior ao do Brasil?

  5. Nada contra ser de direita ou de esquerda, desde que não seja radical. No Brasil, no entanto, ser de esquerda é ser conivente com a corrupção, além de outros vícios …

  6. É exatamente assim. Vivemos, no Brasil, ora avançando, ora retrocedendo, quase que simultaneamente e, dessa forma, seguimos estagnados, sem sair do lugar.

  7. Fim da Segunda Guerra Mundial (WWII), Guerra Fria, Crise dos Mísseis em Cuba 1962. Brasil aliado aos EUA na WWII resultou em 1964 contra os fanáticos pelo Paredón de Fidel Castro e pelo genocida Che Guevara do Marxismo revolucionário sanguinário. Não aprendem mesmo.

  8. Existe uma maldição sobre nós. Ora somos governados pela direita burra e fanática, ora pela esquerda esperta e ladra.

  9. Obrigada por trazer estas memórias às nossas memórias, especialmente dos brasileiros que não vivenciaram aquele período. Aí deu no que deu. Filhotes Nutellas de Che Gevara e caminhoneiros e sertanejos golpistas sonhando com a volta do AI-5. Precisamos virar a página e atualizar nossos desejos, especialmente como cidadãos.

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