Mulher que realiza a mutilação sexual em meninas mostra sua lâmina - Foto: UNICEF SEB-1389/Sebastian Rich

Onde o feminismo deveria estar?

Problemas cotidianos das mulheres dos países africanos mostram que elas precisam de mais liberdade, em todos os aspectos
26.01.24

Será que as mulheres já conquistaram tudo que poderiam ter conquistado? Seriam os grupos feministas e de defesa das mulheres desnecessários no século XXI, considerando que em teoria já temos acesso ao mercado de trabalho, ao voto, à propriedade e a vários outros instrumentos essenciais para a vida em sociedade? Bom, ao imaginarmos grupos feministas de viés marxista, a crítica ao sistema capitalista e patriarcal é geralmente a maior de suas defesas. Então deduzimos que esses grupos já não têm mais utilidade, especialmente nas sociedades que avançaram na igualdade de gênero. O fato é que, sim, há muitos grupos feministas que lutam por pautas equivocadas, mas a dura realidade imposta em várias partes do mundo nos garante que há certas bandeiras que ainda precisam ser levantadas. Eu fui à África conhecer de perto essa realidade e percebi que ao sairmos da nossa zona de conforto, nos deparamos com milhões de mulheres que estão aprisionadas em suas circunstâncias locais e que ainda carecem de direitos básicos. É principalmente por essas mulheres que precisamos advogar.

Recentemente, participei de uma conferência organizada pelo Students For Liberty (SFL) em Nairóbi, no Quênia, que selecionou 30 lideranças femininas de mais de 10 países africanos para um treinamento político e de liderança. Na ocasião, atuei como palestrante, representando o grupo de mulheres do qual faço parte, o Ladies of Liberty Alliance (LOLA), uma organização internacional de mulheres liberais. Durante a conferência tive contato com problemas reais e pude confirmar que o que essas mulheres precisam é de mais liberdade, em todos os aspectos.

A começar pelo direito à propriedade privada. Por incrível que pareça, isso não é um direito universal em pleno século XXI. Conversando com algumas das participantes, especialmente da Nigéria e do Burundi, uma das queixas relatadas é a proibição de possuírem terras. Seja ao adquirirem terras por conta própria, o que é muito difícil diante da situação econômica e cultural existente em seus países, quanto por herança, o que é ainda mais grotesco. Se houver herança decorrente da morte de seus pais, a terra automaticamente deve ser destinada a algum homem, seja irmão, marido ou até filho. A terra não pode ficar registrada em nome da mulher.

O direito à propriedade foi revolucionário na vida das mulheres. Os benefícios por ele trazidos são inúmeros. A garantia da independência financeira só é alcançada por meio da propriedade, do acúmulo de capital. Ao ter o direito de assinar contratos, conseguimos participar de negociações e nos inserir efetivamente no mercado de trabalho, seja como empregadas ou até mesmo como empregadoras. A propriedade privada é a melhor amiga das mulheres, e deveria ser parada obrigatória para qualquer agenda feminista.

E a situação consegue ser ainda pior. Você já imaginou ter o seu próprio corpo mutilado? É a realidade de mais de 200 milhões de mulheres, incluindo inclusive algumas das líderes participantes do evento. Em cerca de 30 países da África, quando a menina se encontra na transição da fase adulta, e que muitas das vezes ocorre de forma precoce, como aos 10 anos, ela passa por um ritual cultural de mutilação genital para representar a transição e para abdicar dos prazeres sexuais que a nova fase lhe reservaria. E qual o problema nos prazeres sexuais? Seria algo pecaminoso? O Papa Francisco recentemente afirmou que o prazer sexual é um “presente divino”, é uma dádiva que deve ser cultivada com responsabilidade. Apesar da grande influência da religião católica e protestante na África, isso não faz diferença para essas mulheres, já que a mutilação de seus próprios corpos pode acontecer ainda quando meninas. É para essas mulheres que os grupos feministas deveriam existir.

Além disso, uma queixa unânime durante o evento foi a impossibilidade de participação das mulheres na política. Isso é algo que existe não necessariamente por impedimentos legais, mas principalmente por barreiras culturais. A começar pelos mais altos escalões: a última mulher que presidiu um país africano foi Ivy Matsepe Casaburri, que assumiu a presidência da África do Sul em 25 de setembro de 2008 e ficou como presidente interina por apenas 14 horas. Em alguns outros cargos, as mulheres até conseguem chegar, mas muitas vezes sem a força política para efetivamente trabalhar suas pautas. E onde começa esse problema?

Ficou claro, durante a conferência, que as barreiras começam nas esferas mais básicas do exercício da política, como na fase universitária, onde é culturalmente proibida a participação feminina na liderança. O máximo que podem fazer é participar como vice-presidentes dos centros acadêmicos, os quais devem ser sempre presididos por homens. Um detalhe importante é que a conferência foi promovida por uma organização estudantil (SFL) presente em centenas de universidades ao redor do mundo, que incentiva seus alunos a se envolverem na política universitária, considerada a base da democracia fora das faculdades. E é muito triste perceber que as líderes africanas não apenas não são incentivadas, mas também são impedidas de ocupar esses espaços. Se desejamos a presença de mulheres na política, essa é uma pauta que deve ser defendida: o exercício dos direitos políticos desde as esferas mais simples.

É nítido que há muito a ser conquistado pelas mulheres ao redor do mundo. E é  nesses problemas reais, enfrentados por mulheres reais, que devemos concentrar nossos esforços, seja em nosso país ou fora dele. Se defendermos mais liberdade em todas as esferas, seja pelo direito à propriedade privada, à autonomia dos nossos corpos e à participação plena na política, estaremos defendendo as mulheres.

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  1. Daí, em vez de se ocuparem disso, as que deveriam ficam encrencando com o suposto machismo e sexismo do nome do vestido tomara-que-caia.

  2. Apoiado. O feminismo no ocidente é de um quixotismo ridículo que, se fazendo de idiota, é pernicioso no intento persistente marxista da infinita luta de classes pré revolucionária. Enquanto isso, como muito bem demonstra a autora, o que não falta são mulheres VERDADEIRAMENTE oprimidas esse mundo afora.

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