A Catedral da Sé, em São PauloA Catedral da Sé: cidade tem nome de santo ranheta - Foto: Governo de São Paulo

Se o sertanejo é um forte, o paulistano é, antes de tudo, muito louco

Sobre o aniversário de 470 anos da cidade que é um bafafá, um faz-desmancha-refaz, berço de um povo de livres-pensadores
26.01.24

Ontem minha cidade, São Paulo, fez 470 anos. Fundada por padres jesuítas, ganhou esse nome segundo o hábito antigo de batizar cidades ou crianças recém-nascidas com o nome do santo ou da festa do dia natal: 25 de janeiro é o dia da conversão de São Paulo, conforme se lê nos Atos dos Apóstolos 9, 1-22, versículos que antigamente se liam na missa desse dia. O nome do santo caiu bem numa cidade tão ranheta, tão belicosa quanto foi, a seu tempo, o Apóstolo (que foi chamado de “uma peste” nos Atos 24,5), e que, como ele, amansou.

Ranheta, eu disse, e disse bem. Mas também que criança levada esta cidade sempre foi. Que criança rebelde. Foi, afinal, esta cidade quem tentou aclamar rei o bandeirante Amador Bueno da Veiga, em 1641 (ele recusou; uma placa colada à parede do Mosteiro de São Bento dá notícia do fato), primeiro berro de independência, e cujos habitantes depois arranjaram guerra com os emboabas. Esta cidade depois aclamou o Imperador Dom Pedro I e a Independência de facto, aliás proclamada nas suas terras. E depois foi ainda a capital do republicanismo e do café, duas coisas que andaram juntas, antes e depois (com leite). Foi esta cidade que se sublevou em 1924, e depois de novo em 1932. E foi ainda aqui, no Anhangabaú, em 1984, que a onda da redemocratização virou tsunami. Tanta briga, tanto remelexo numa cidade que, sabe Deus por que, ganhou fama de conservadora.

Porque a verdade é que se o sertanejo é, antes de tudo, um forte, o paulistano é, antes de tudo, muito louco. Ele elegeu para prefeito o camarada que abandonou a presidência e deu início à onda que culminou no golpe de 64. Depois, elegeu prefeitas duas mulheres de esquerda, uma delas socialite e sexóloga, a outra nordestina e supostamente homossexual. Para a mesma prefeitura, elegeu um negro de direita – e carioca. Sempre deu vez na vereança ao populismo de direita (enquanto isso existiu) e ao de esquerda (hoje quase exclusivo), sem abrir mão de gente trans e negros gays. Fez deputado federal um comediante semianalfabeto e senador um senhor cuja sanidade mental sempre foi objeto de debate. E, para honrar qualquer fama capitalista, fez de um marqueteiro seu prefeito e depois seu governador. Conservador? O paulistano é um livre-pensador.

Não sou paulistano “da gema” (expressão que ninguém usa mais), se a gente considerar como gema a Colina Histórica de que já falei por aqui. Serei antes de uma “gema estendida”: nasci num hospital que não existe mais, na Rua 21 de Abril, no Brás. Rua aliás que cruza a Rua do Hipódromo – hipódromo que também não existe mais. Perto de cinemas que não existem mais (Universo, Roxy, Fontana, Brás) e de restaurantes e cantinas que não existem mais (o Braseiro, a Ballila) ou mudaram para pior (o Garoto), das bancas de jornal que não existem mais, das lojas grandes que não existem mais, das ruas calçadas de paralelepípedos que não existem mais. E nem vou falar aqui dos fantasmas, das pessoas que não existem mais.

Essa aliás é outra marca da minha cidade: o faz-desmancha-refaz-desmancha de novo-refaz de novo, sem parar. Tudo aqui parece eterno no atacado, mas é muito provisório no varejo. O cinema que vira igreja, a igreja que vira restaurante, o restaurante que vira loja, a loja que vira shopping, o shopping que vira hospital, o hospital que vira condomínio, o condomínio que vira avenida, a linha do trem que vira outra avenida, a passagem de nível que vira ponte, a ponte que vira túnel, a casa que vira prédio, o prédio que vira três prédios, a árvore que vira nada, o bairro charmoso que vira um perigo e o bairro feio que vira chique. Tiro exemplos da minha própria vida: das cinco primeiras casas em que morei, só uma ainda existe.

Sou filho desse bafafá, desse “não tenho nada para fazer, mas estou com pressa”, dessa sensação de que a vida no centro de qualquer outra cidade grande do Brasil é uma espécie de sábado à tarde, dessa vontade de rir sempre que alguém de fora pergunta “será que dá pra ir a pé?”, das negociações complexas para juntar dez amigos em torno de uma mesa, de falar e ouvir “ih, naquele tempo isso aqui era tudo mato” e “pois é, choveu e parou tudo” e “nossa, faz séculos que eu não ando por aqui” (na Avenida São João) e “ah, é fácil, dois ônibus e um metrô” e “não ande sozinho por lá à noite, viu?”.

Sou filho disso aí. Filho sem orgulho, porque geografia não é escolha, e filho sem vergonha, porque vergonha de que afinal? Sou filho disso aí e ponto final. Minha cidade, minha cara, meu pulmão, minha garganta, meu fígado, meu amor.

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  1. Morei em São Paulo entre 1962 e 1964, não lembro direito pois vivia meus primeiros anos de vida. Mas, mesmo naquela época, meu pais não aguentou viver ali. para ele tudo era muito confuso e difícil. Voltamos para Curitiba. Na minha adolescência adorava São Paulo para me divertir, shows, restaurantes, e também fui a trabalho. Hoje admiro São Paulo mas, assim como meu pai, o seu dia-a-dia é muito estressante para mim.

  2. Sou paulistano da gema. Nasci na Moóca num domingo de Carnaval, em fevereiro de 1941. Parto feito por parteira, na casa dos meus pais, às margens do Tamanduateí, onde morei até 1972.

  3. 👏👏👏👏 não sou paulistana, nem moro em São Paulo, mas para uma paulista do interior, esse cidade sempre me causará o mesmo fascínio da primeira vez que entrei na barriga do monstro, numa manhã chuvosa, uma criança no vidro embaçado do ônibus com os olhos arregalados

  4. Orlando, muito legal o seu artigo. Também sou paulistano da zona leste, e ali pertinho, do Belenzinho, e estudei na rua 21 de Abril no Sarmiento, então no Brás e hoje fazendo parte do Belém (ninguém mais fala o correto: Belenzinho). Todos os cinemas citados eu frequentei (sou de 1953), e alguns restaurantes e cantinas também. Também gosto e tenho orgulho bobo da nossa cidade, e hoje continuo morando na zona leste, mas no Tatuapé, um pouco mais longe do centro. Valeu!!! Abraço!

  5. Paulistano nascido na Moóca, às margens do Tamanduateí, de parto feito em casa na manhã de um domingo de Carnaval, em 1941, que frequentou o Braseiro - na Celso Garcia; o Ballila e o cine Roxy - ambos na rua do Gasômetro; a 1060, na Rangel Pestana e a 1020, na Barão de Jaguara, na parte do Cambuci - essa rua começa na Moóca e acaba no Largo do Cambuci, adorei essa crônica tão bem escrita que me trouxe saudade. Hoje, moro em plena Avenida Paulista, entre a Brigadeiro e a Joaquim Eugênio. Continuo paulistano, mas envergonhado.

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