Foto: PixabayGente que censura hoje pode ser censurada amanhã

Crime de opinião

Nenhum agente policial merece ser destacado para ler e ouvir as aberrações que os extremistas publicam nas redes sociais
19.01.24

Fico intrigado quando ouço que um crime de opinião está sendo investigado. Talvez seja assim porque minha ideia do que seja um investigador seja demasiado literária, e não consigo imaginar Maigret ou Poirot esclarecendo se o tuíte de um aposentado de Santa Catarina constitui incitação ao golpe de Estado. Mas tampouco consigo figurar o procedimento seguido nas delegacias brasileiras para resolver casos assim.

Suponho que um meganha seja escalado para assistir ao stand up em que um humorista faz piadas ruins sobre nordestinos e gays, ou para ver o vídeo em que o youtuber com nome de bicicleta defende a legalização de partidos nazistas, ou para ler tuítes de possíveis inimigos da democracia. Ao final do que podem ser horas à frente do computador, ele deve fazer um relatório sobre o que viu, ouviu e leu, e com base neste documento um processo judicial talvez seja aberto. Espero não ofender o zeloso investigador encarregado de tarefas tão tediosas quando digo que nada disso me parece exigir habilidades detetivescas. São casos em que sequer paira dúvida sobre a identidade do suposto criminoso, pois o material investigado costuma ser ostensivamente autoral.

O que se exige do abnegado agente da lei é estômago. O mercado de opinião – no qual ocupo um modesto lugar – anda, na média, muito insalubre. Sei bem o que o pobre policial enfrenta. Para um artigo sobre neostalinismo na falecida revista Época, me enfronhei nos canais de YouTube de um clubinho de negacionistas da História que conversam trivialmente sobre o emprego humanista do pelotão de fuzilamento. Também já vi o vídeo no qual o então deputado federal Daniel Silveira compartilhou com seus seguidores a fantasia de ver o ministro Edson Fachin ser surrado com um gato morto. No exercício profissional, frequento o Twitter (aliás, X) de lulistas e bolsonaristas, e leio ainda as postagens dos gurus destas duas seitas políticas.

Poderia alegar que tanta leitura indigesta terá agravado minha gastrite, se isso não fosse exagero dramático. Quando digo que o mercado de opinião é insalubre, estou empregando, deve ser óbvio, uma figura de linguagem. O inspetor sanitário que fiscaliza mercadinhos e supermercados terá critérios claros e objetivos para definir o que faz mal à saúde do consumidor: o açougue que vende carne com data de expiração vencida e a padaria onde há fezes de rato na farinha devem ser multados ou fechados. É um tanto mais complicado decidir o que constitui ou não crime no mercado de opinião.

Polícia e Judiciário não costumam falar em “crime de opinião”, e nem a imprensa vale-se da expressão. Mas é disso que se trata: de opiniões suprimidas por extrapolar os tão decantados “limites da liberdade de expressão”. Não estamos diante de ataques a um indivíduo, para os quais vale chamar o trio penal injúria, calúnia e difamação. O que está em questão é um mero ponto de vista, com frequência torto, tosco, preconceituoso, imoral.

Do meu ponto de vista, virtualmente qualquer ponto de vista ruim, por mais odioso que seja, pode ser desarmado ou desmoralizado na discussão pública livre, sem necessidade de mobilizar a mão dura do Estado. (O leitor está livre para considerar que meus pontos de vista são estúpidos, imorais etc. Só, por favor, não chame a polícia.)

Um caso recente e ruidoso de alegado crime de opinião envolveu um jornalista petista. É o tal que afirmou, em um tuíte, que os “métodos” do Hamas podem até ser questionáveis, mas que nem por isso se deve rejeitar o grupo palestino, pois “não importa a cor dos gatos, desde que cacem ratos”. Em resposta à denúncia de uma associação judaica, o Ministério Público mandou a Polícia Federal apurar a história.

Os petistas, sempre tão pândegos, apresentaram-se então como fervorosos defensores da liberdade de imprensa, enquanto parte considerável dos que defendiam a livre expressão de ideias contra as investidas censórias da esquerda aplaudiu a censura ao esquerdista. Todo mundo defende liberdade total para as ideias com que concorda.

Gente que censura hoje pode ser censurada amanhã, e é por isso que se deve ter cuidado antes de exaltar pretensos mártires da liberdade de expressão. Uma vetusta associação de imprensa saiu em defesa do petista sob a alegação de que não cabe calar vozes críticas a Israel. Estes termos estão vexaminosamente errados: a defesa de um grupo terrorista que pratica o assassinato, o estupro e o sequestro extrapola em muito a crítica às políticas israelenses nos territórios ocupados. Para interessados em críticas contundentes e consistentes à atual ofensiva de Israel contra o Hamas, recomendo os artigos de Jack Omer-Jackaman, no site Persuasion, e de Andrew Sullivan, em The Free Press. Ambos acusam a imoralidade da política de terra arrasada em Gaza, sem nem por isso elogiar a eficiência do Hamas no extermínio de “roedores”.

É possível defender o direito de expressar ideias que julgamos abomináveis – ou que são objetivamente abomináveis, como a apologia de um grupo terrorista – sem exaltar a abominação. E é possível se contrapor a opiniões nefastas sem tentar calá-las. A associação judaica faria muito bem em emitir uma nota de repúdio ao antissemitismo do jornalista (por acaso, judeu) que admira o Hamas. Mas não: preferiu conferir relevância ao sujeito, convertendo-o em perseguido por censura judicial. (Efeito Streisand, já ouviu falar? Neste texto, me esforcei para não amplificá-lo. Se não cito nomes, não é por cautela, mas por desprezo.)

Temo que seja inútil insistir, como sempre insisto, nessa conversa de liberdade de expressão, que não suscita entusiasmo. No lugar de princípios abstratos, valerá mais lembrar o pobre agente da PF que decerto queria combater PCC e Comando Vermelho, incendiar instalações do garimpo na Amazônia ou aparecer no Jornal Nacional conduzindo um corrupto algemado para a detenção – mas acabou encarregado de ler uma carrada de clichês sobre colonialismo sionista em um site governista.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. No Brasil a confusão é intencional, ou, faz parte da estratégia para enrolar o eleitor. Excelente texto.

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