Por que Lula e o PT não podem ser considerados democráticos

É definitivo. Não tem jeito de classificar Lula e o PT como democráticos a não ser alterando o conceito de democracia.

Se tomarmos o conceito de democracia a partir das leituras de Spinoza, Locke, Montesquieu, Constant, Rousseau, Jefferson, Madison (e outros federalistas), Paine, Tocqueville, Mill, Dewey, Arendt, Berlin, Popper, Dahl, Bobbio, Havel, Maturana, Dahrendorf, Rawls e Sen (para ficarmos de meados do século 17 até o fim do século 20), não há como classificar Lula e o PT como democráticos.

Agora, se alterarmos o conceito de democracia para que ele passe a designar cidadania ofertada a partir do Estado por um líder e seu partido, aí sim, dá para considerar Lula e o PT como democráticos. Mas, nesse caso, isso valerá também para o ditador Miguel Díaz-Canel e o Partido Comunista de Cuba.

Sim, o objetivo de Lula e do PT é sequestrar a palavra “democracia” para alterar o próprio conceito de democracia, redefinindo-o para designar “cidadania” ofertada a partir do Estado pelo líder populista e seu partido. O resultado dessa operação não será mais democracia, mas um conceito não democrático de cidadania.

Como disse Lula com essas exatas palavras (está gravado em vídeo):

O conceito de 'cidadania' de Lula. O objetivo é ressignificar o conceito de 'democracia' para que ele passe a designar esse conceito de "cidadania", ofertada a partir do Estado pelo líder e seu partido. pic.twitter.com/VxAw1boeOX

— Augusto de Franco (@augustodefranco) January 10, 2024

“O único país que conseguiu dar um salto foi Cuba, mesmo assim é vítima de um bloqueio de mais de 60 anos em que não deixam eles quietos. Mas eles resolveram o problema da educação, eles resolveram o problema da dignidade, eles resolveram o problema da cidadania e a única coisa que eles estão pedindo é que deixem os cubanos cuidar dos seus problemas e os americanos cuidem dos problemas deles”, disse Lula.

São muitas as evidências de que Lula e o PT não são democráticos e já vai ficando cansativo elencá-las. Há coisas que democratas não podem fazer. Para citar alguns exemplos, democratas não podem se alinhar às maiores autocracias do planeta (China, Rússia, Irã etc.) contra as democracias liberais, nem ajudar a articular um bloco composto majoritariamente (quase exclusivamente) por ditaduras (o Brics), em que não figura nem uma democracia liberal. Democratas não podem manter um relacionamento preferencial com ditaduras de esquerda (como Cuba, Venezuela, Nicarágua e Angola), deixar de apoiar a resistência ucraniana à invasão do ditador Putin, sabotar as sanções à Rússia e se posicionar objetivamente contra a as ações de autodefesa de Israel. Em suma, democratas não podem esposar a visão geopolítica de um (imaginário) Sul Global em guerra fria contra o mundo livre (supostamente composto por países ricos, imperialistas e colonialistas).

Perdão, mas não há como considerar quem faz tudo isso como democrata. Imaginem o escândalo que seria se os governantes da Alemanha, Irlanda, Japão, Suécia ou Suíça fizessem coisas assim.

A não ser, é claro, que modifiquemos o conceito de democracia.

A despeito de tantas evidências, há uma resistência de sindicalistas, militantes de ONGs e movimentos sociais, acadêmicos, artistas e jornalistas de ver o óbvio (ou, talvez melhor, uma insistência em não querer ver o óbvio). Então eles alegam que Lula e o PT são democratas porque lutaram contra o golpe militar de 1964 e salvaram a democracia do golpe bolsonarista. E porque não querem destruir as instituições da democracia – antes, as defendem. Ou porque não são extremistas (como os bolsonaristas) e, sim, moderados. Por último, porque defendem a diversidade e a pluralidade social, não perseguem as minorias e propõem cidadania para todos.

Ora, esses são argumentos (ou desculpas) pedestres. O fato de alguém ser contra golpe de Estado (à moda antiga) não o torna democrata. Ele pode ser a favor da conquista progressiva de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado conduzido por um líder e controlado por um partido.

O fato de alguém ser contra a destruição das instituições não o torna democrata. Ele pode ser a favor de defender as instituições para ocupá-las, fazendo maioria no seu interior para colocá-las a serviço de um partido hegemonista.

O fato de alguém não ser extremista não o torna um democrata. Ele pode ser moderado e, ainda assim, prorrogar sua permanência (ou a permanência do seu partido) no poder inviabilizando a rotatividade democrática.

O fato de alguém ser a favor da diversidade e da pluralidade social não o torna um democrata. Ele pode fazer isso ao mesmo tempo em que não aceita a diversidade e a pluralidade política. Ele pode ser a favor de incluir mulheres, negros, LGBTs, desde que sejam do seu campo político e rejeitar os que pertencem a outros campos políticos.

O fato de alguém defender cidadania para todos não o torna democrata. Ele pode estar querendo substituir o conceito de democracia por um conceito de cidadania ofertada a partir do Estado por um líder ou por um partido, visando ao controle da sociedade pelo Estado e não o inverso: o controle do Estado por uma sociedade democrática – o que é própria definição de democracia liberal.

Augusto de Franco é escritor