Flickr/Tobias FidelisCopacabana: fui obrigado a comprar um ventilador em 550 prestações no Magazine Luiza

Águas de macho

19.01.24

Enquanto inativista radical, passo o muito tempo que ainda me resta na vida sem fazer nada. Durante a manhã não tenho o que fazer, na parte da tarde descanso de tudo que não fiz pela manhã. Aqui no meu Dodge Dart 73, enferrujado, passo os dias coçando o saco até fazer ferida, acompanhando as novas dancinhas do TikTok e as brigas no BBB 737. O calor esturricante e úmido que assola o Rio de Janeiro torna impraticável qualquer atividade física. Ontem, tomando banho, percebi que o suor que escorria pelo meu corpo, por força do ato de me ensaboar, era mais copioso e líquido do que a água que descia do chuveiro.

À noite é preciso muito cuidado. Além de untar o lençol com bastante manteiga, o dorminhoco não pode esquecer de mudar de posição ao longo da madrugada para não acordar assado só de um lado. Aliás tem muito carioca passando a noite no forno da cozinha que é o lugar mais fresco da casa.

Sexo nem pensar. A fricção contínua e incessante dos corpos excitados pode ocasionar uma combustão espontânea incontrolável em que os amantes, carbonizados, só poderão ser reconhecidos pelo exame da arcada dentária.

Visto que o calor é insuportável, fui obrigado a comprar um ventilador em 550 prestações no Magazine Luiza. A canícula transformou a pacata Rua da Amargura, onde vivo, numa sucursal do inferno. Só que o próprio Belzebu não aguentou mais as elevadas temperaturas por aqui e resolveu passar o verão no Senegal, que é mais fresquinho. O Diabo, sempre traiçoeiro, ladino e perspicaz, acabou levando com ele a Isaura, minha patroa, que sofre muito com o calor na bacurinha.

Acontece que não há nada que esteja ruim e que não possa piorar. Depois de mais de um mês de temperaturas de mais de 40 graus (com sensação térmica de 30 cm!), uma enorme tempestade desabou sobre a cidade transformando a rua num riacho caudaloso. A fúria das águas era tamanha que o meu Dodge Dart 73, enferrujado, onde habito, saiu boiando desgovernado. Sem leme e sem documento, minha moradia anfíbia singrava as ruas da cidade como uma nau sem rumo. Eu parecia um Vasco da Gama (o navegador, não o time de futebol) cruzando as águas tormentosas no Caminho das Índias, a longínqua e antiga novela criada por Glória Perez.

Agarrado no volante, deparei-me com perigosos piratas que vendiam acessórios de celular falsificados na Rua da Alfândega. Os terríveis bucaneiros atacaram a minha embarcação em busca de tesouros escondidos. Mas o único que possuo é o Tesouro da Juventude, uma coleção de livros que me foi presenteada por um dos meus pais. Tive vários, mas mãe só tem uma.

Enfurecidos com a total ausência de bens materiais roubáveis, os piratas resolveram me amarrar no mastro. O mastro de um deles. Em seguida, fui vítima das mais abjetas sevícias que podem ocorrer com um indivíduo heterossexual cisgênero. Até mesmo a minha dentadura foi arrancada na busca desenfreada por um dente de ouro. Só fui salvo graças ao engarrafamento de carros boiando. Ao verem um pobre idoso sofrendo, alguns bons samaritanos invadiram a embarcação e, num embate encarniçado, me livraram dos desalmados corsários. Em seguida, as bondosas criaturas, sempre caridosas, começaram a linchar os flibusteiros. Mas não adiantou nada, acabada a violência explicita, percebi que os meus salvadores eram milicianos e tive que entregar o meu ventilador como pagamento da taxa de segurança.

 

Agamenon Mendes Pedreira é jornalista pirata

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Agamenon, ainda aguardo sua crônica sobre o profeta Maomé, tal como vc fez com Jose e Maria. Não esqueça de deixar o endereço para os devotos...

    1. Acho que o Ruy Goiaba não trabalha mais neste jornal.

Mais notícias
Assine agora
TOPO