Flickr/Elcio AlvaresGeisel: ele foi informado que 104 militantes de extrema esquerda foram executados no final do governo Médici

A farsa da abertura democrática na ditadura

A ordem cruel de Geisel mandando Figueiredo executar militantes de esquerda, revelada em 2018, não levou a investigação nem a punição
19.01.24

Em 10 de maio de 2018, foi revelado pela Agência Brasil um documento da CIA, mantido em sigilo até três anos antes, em que seu então diretor, Willian Colby, informava ao chefe, Henry Kissinger, um fato que pôs por terra todo o trololó da ditadura militar brasileira de que haveria uma abertura democrática aqui.

Conforme o relato, em 30 de março de 1974, o general Ernesto Geisel foi informado de que 104 militantes de extrema esquerda foram executados nos órgãos repressivos no final do governo de Médici, seu antecessor. Em 1º de abril, consagrado à mentira, Geisel mandou que o diretor do Serviço Nacional de Informações (SNI), general João Figueiredo, que viria a sucedê-lo na Presidência da República, escolhesse pessoalmente as vítimas das próximas execuções. Desde que, segundo o próprio poderoso chefão, só fossem incluídos na lista fatal “os mais perigosos terroristas”. Seis anos depois, não se sabe que vítimas foram escolhidas nem se investigaram como foram executadas. Agora, um vídeo da TV Brasil circulou nas redes sociais referindo-se a esse fato pretérito.

O professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Matias Spektor, que o descobriu e lhe deu publicidade, o considerou “o documento mais perturbador que já leu em 20 anos de pesquisa”. Mas, por incrível que pareça, a repercussão dessa notícia dolorosa limitou-se a uma entrevista a Pedro Bial em seu programa em horário tardio na TV Globo. E a notas esporádicas nos noticiários da Bandeirantes, do G1, do UOL Economia (?) e alguns outros sites de notícias. O fato foi tratado com um mínimo de atenção nas públicas TV e Agência Brasil (no governo Temer). Dando conta, por exemplo, de que “em nota, o Exército Brasileiro informou que os documentos que poderiam comprovar as afirmações foram destruídos, de acordo com norma da época que visava preservar informações sigilosas”. E que “o Centro de Comunicação Social do Exército informa que os documentos sigilosos, relativos ao período em questão, e que eventualmente pudessem comprovar a veracidade dos fatos narrados foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época – Regulamento da Salvaguarda de Assuntos Sigilosos (RSAS) – em suas diferentes edições”.

Inútil, então, poderá ser completar que o Exército tratou de lavar o sangue de tais execuções, que nunca ninguém saberá sequer se foram perpetradas, para evitar dissabores que pudessem dar luz ao trabalho meritório, mas inócuo, da Comissão Nacional da Verdade, durante o governo Dilma. Pelo menos ela pode apresentar como positiva a vasta documentação reunida em 2011, por iniciativa da então presidente, para gente de boa-fé e boa índole devassar os porões da tortura, do desaparecimento forçado e dos assassinatos de inimigos políticos dos militares golpistas de 1964. A pesquisa terá de ser feita com dificuldade nos arquivos em que os papéis são guardados, pois as fontes de conclusões da comissão são censuradas de forma cínica e deslavada pelos meios disponíveis nos sites de busca.

O boicote dos controladores de algoritmos só é superado pela má vontade explícita dos funcionários públicos ou dos políticos com acesso ao poder republicano flagrados em textos como o do livro Poder Camuflado, do colega Fabio Victor. Ou em dissertações de mestrado como “Necrogovernabilidade: os desaparecidos políticos e a vala clandestina do Cemitério de Perus“, do geógrafo Sandro Moret Brait Silva, da Universidade de Santo Amaro (Unisa). Nas 448 páginas do relato do jornalista sobressaem atitudes dúbias de civis como Jaques Wagner, ministro de Defesa de Dilma, tão condescendente com fardados como é o atual titular da pasta, José Múcio Monteiro. E, no texto do mestre, a repugnância cristã diante do desprezo dos tiranos desrespeitando os despojos mortais das vítimas da violência desumana do regime.

No meio dessa mixórdia destacam-se o repórter Caco Barcelos e a cristã Luiza Erundina. Ela, no mandato de prefeita de São Paulo, teve papel de heroína na ajuda às famílias em busca de identificar seus mortos. Infelizmente, contudo, seu heroísmo não bastou para que ossadas de mais de 1,5 mil desconhecidos tivessem respeitado seu direito à paz de um túmulo por culpa da arrogância e da estupidez de governantes civis e comandantes de caserna. São incapazes de respeitar o direito justo exigido por Antígona, heroína da tragédia grega, de sepultar um ente querido.

No país da lisonja no lugar do amor, do grito em vez do cochicho, do “cala a boca sempre mais” e do fel substituindo o néctar, o comum é incinerar provas e jogar inimigos abatidos em valas de desonra e esquecimento. Foi isso que permitiu a mentira, apregoada nos quatro anos de governo do mau capitão Bolsonaro, em que o regime tirânico instalado em 1964 e piorado nos anos 1970 fosse tratado como o legítimo combate do ódio mentiroso à verdade do amor e da boa-fé.

O silêncio imposto por quartéis, delegacias, cemitérios e palácios ditos do governo e da Justiça, ao fato que perturbou Matias Spektor e qualquer brasileiro de bom coração seis anos depois da revelação da terrível verdade é mais podre do que ossos jogados em buracos como se fossem dejetos. A farsa da abertura de Geisel, Figueiredo e suas tropas soa como o réquiem da vergonha deste país da censura, da desonra e do pavor.

 

José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor

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  1. Convivi com as imagens de Geisel e Figueiredo em minha juventude. E foi pelas péssimas lembranças que votei em Lula no seu 1º mandato. Pena que ao longo do tempo descobrimos que eles só usam ferramentas diferentes para impor seus desejos pelo poder.

  2. Vendo a esquerda trabalhar hoje, às vezes penso se foram tão seletivos assim. A sociedade toda refém de políticos corruptos, blindados nos tribunais superiores, bandidos que matam por um celular, crime organizado com milicianos e narcotraficantes…será mesmo que foram tão cruéis?

  3. Parabéns, Nêumanne, seu texto é de arrepiar! Deu uma vontade de chorar! Seu conhecimento da língua portuguesa é de um enriquecimento ímpar! Obrigada. 🩷

  4. Geisel era conhecido como o homem que acabou com a tortura e assassinato de opositores. Mais recentemente viu-se que apenas era mais seletivo. mandava eliminar apenas os opositores que julgava mais proeminentes.

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