Rovena Rosa/Agência BrasilAto em solidariedade ao povo palestino na Avenida Paulista: antissionismo é a nova marca do antissemitismo

Islamo-esquerdismo: a nova face do ódio ao judeu

O perigo real para os judeus parece ter se deslocado da extrema direita para a extrema esquerda
29.12.23

Para construir sua hegemonia, a esquerda trocou o discurso da luta de classe pelos aforismos igualitários. A solidariedade entre os grupos heterogêneos, de classes sociais distintas, tornou-se possível pelo vínculo ideológico em uma mesma consciência revolucionária contra o inimigo comum.

Na revisão original do marxismo, promovida pela nova esquerda, o conceito de classe social tornou-se quase irrelevante. Não haveria mais um sujeito revolucionário privilegiado e específico como o proletariado, mas novos sujeitos revolucionários construídos a partir da homogeneização discursiva em torno de forças conflitivas diversas e dispersas na sociedade.

É nesse contexto que se torna compreensível a cooptação dos movimentos sociais minoritários, como o movimento indigenista, ambientalista, feminista, antirracistas e de minorias sexuais. A narrativa que unifica um leque tão heterogêneo de causas é a atribuição de culpa de todas as mazelas a um inimigo comum, que vem a ser a ordem espontânea capitalista e os valores ocidentais que a sustentam.

É aí que o Islã, com seu ódio visceral à modernidade e ao Ocidente, entra como um aliado privilegiado e os muçulmanos passam a ser os novos representantes dos injustiçados na Terra.

Uma forma complementar de interpretar essa estranha aliança, denominada islamo-gauchisme (islamo-esquerdismo) pelos franceses que lhe são críticos, é remetê-la ao Congresso dos Povos do Oriente, o congresso de Baku, convocado pela Internacional Comunista, ou Comintern, um ano após sua formação, em 1920.

Nessa reunião, mais de 2 mil militantes anticoloniais, na sua maioria asiáticos e muçulmanos, discutiram as posições dos marxistas em relação ao Corão, ao sionismo, ao islamismo e ao colonialismo. No final do Congresso, que durou oito dias, aprovaram o apelo a uma “guerra santa” para a libertação dos povos do Oriente e proclamaram o advento de uma luta global pela liberdade anticolonial.

A estratégia adotada era dar apoio às lutas de libertação nacional para, posteriormente, fazê-las evoluir na direção revolucionária. A linha definida em Baku foi seguida quando, mais tarde, em 1979, agremiações partidárias e intelectuais de esquerda apoiaram a tomada de poder no Irã pelo aiatolá Khomeini. Na ocasião, o “filósofo” Michel Foucault visitou o Irã duas vezes como correspondente de um jornal italiano e escreveu artigos entusiasmados em defesa da Revolução iraniana.

A aliança que já existia entre a esquerda radical e o Islã ficou mais evidente com o ataque de 11 de Setembro de 2001 ao World Trade Center. Após o ataque, a maioria dos agrupamentos de esquerda condenou não os autores do ato terrorista, mas a islamofobia que supostamente estava crescendo no Ocidente. Em todos os ataques terroristas islâmicos posteriores, a atitude de justificação por parte da extrema esquerda permaneceu a mesma.

Na Europa, devido à intensa imigração, a aliança com os muçulmanos entrou de vez no jogo político e com um agravante: diante das divisões internas entre os islâmicos, a esquerda, principalmente a francesa e a britânica, optou pela aproximação com a Irmandade Muçulmana, que tem por objetivo a islamização progressiva das sociedades seculares.

Esse processo de islamização está acontecendo com a ajuda dessa esquerda que, sob o pretexto de humanitarismo, atua em favor da abertura de escolas baseadas no Corão, estabelecimento de redes de assistência social, serviço de emprego, proteção jurídica, etc.

Os partidos políticos de esquerda, que se consolidaram na Europa a partir dessa aproximação com os muçulmanos, reverberam ainda eco anticolonialista do congresso de Baku. Na retórica deles, a França, a Inglaterra ou qualquer outra democracia liberal europeia, além, claro, dos Estados Unidos e de Israel são intrinsecamente coloniais, racistas, opressores e injustos.
Islamo-esquerdismo e antissemitismo

O antissemitismo não é mais o mesmo. Durante as duas ou três décadas após a Segunda Guerra Mundial, ele dificilmente ousou se manifestar até que, sem dizer seu nome, encontrou no antissionismo o pretexto para emergir.

O perigo real para os judeus parece ter se deslocado da extrema-direita para a extrema-esquerda. Não que esta ideologia não seja em si mesma repulsiva e nociva, mas o seu racismo aberto e explícito já encontra uma rejeição quase unânime. Pelo contrário, o racismo camuflado pelos movimentos antirracistas, o antissemitismo camuflado em antissionismo está a cada dia mais forte.

Como bem notou Luc Ferry no artigo “Judéophobie, comprendre la nouvelle donne”, publicado no Le Figaroé urgente compreender que as diferentes faces da judeofobia não fazem parte da mesma história nem da mesma lógica.” Se, da década de 1930, o antissemitismo católico baseado na acusação de deicídio ainda era um problema, as coisas evoluíram para o bom senso “desde que o Vaticano II pôs fim a esta velha e estúpida acusação” ao especificar que o que foi cometido durante a Paixão de Cristo não podia ser atribuído nem a todos os judeus vivos da época, nem aos judeus de outros tempos.

Segundo o filósofo francês, o antissemitismo nazi também está em vias de extinção, mas permanece o outro tipo de antissemitismo que, na década de 1930, serviu-lhe de reforço: o antissemitismo islâmico da Irmandade Muçulmana.

O que vivenciamos hoje, argumenta Ferry, é de natureza diferente porque a essas três formas citadas junta-se agora uma quarta forma de judeufobia, “aquela de um wokismo e de um islamo-esquerdismo, aos olhos dos quais o muçulmano substituiu o proletário no papel dos oprimidos”.

Dentro dessa perspectiva ideológica “o sionismo é o mais recente avatar do colonialismo ocidental e racista apoiado pelo neoliberalismo americano, o principal apoio de Israel, de modo que o sionismo combina tudo o que a extrema esquerda odeia”.

O antissemitismo de esquerda é um problema de longa data que se tornou evidente e incontornável após a Segunda Guerra Mundial e o estreitamento das relações entre a extrema esquerda e o Islã.

Na década de 1950, já havia eco na extrema-esquerda de teses que negavam a Shoah, o Holocausto. Paul Rassinier, escritor militante do Partido Comunista é considerado o pai do revisionismo do Holocausto. Ele negou a existência das câmaras de gás e defendeu a ideia de que a Segunda Guerra foi um complô armado por judeus para dominar o mundo.

Desde os anos 2000, a esquerda radical não consegue mais conter o antissemitismo militante que se esconde por trás do virulento antissionismo. As manifestações de apoio à causa palestina há tempos vêm mescladas de slogans contra os judeus e contra Israel.

É possível ser judeu, sionista e defender o direito do povo palestino ter a sua soberania. O que não é possível é aceitar que se negue também a Israel esse direito. A esquerda radical, porém, mesmo quando retoricamente reconhece o “direito de existir” do Estado de Israel, condena o sionismo, que está na gênese da sua fundação.

A deturpação do significado do sionismo faz parte da retórica antissemita que cresceu exponencialmente após o início da guerra Israel-Hamas. O ataque de 7 de outubro de 2023, perpetrado pelo grupo terrorista islâmico, deveria ter provocado uma onda de solidariedade às vítimas, mas o que se viu na extrema esquerda foi ou o apoio explícito ao grupo terrorista ou justificativas do ato de terror que remetem a um contexto de “colonialismo” e “apartheid” por parte de Israel contra os palestinos.

A identificação entre sionismo e colonialismo é uma forma camuflada de antissemitismo que deturpa a história e escamoteia o fato de que o sionismo foi, na verdade, um movimento político que surgiu como uma tentativa de resolver a questão judaica, isto é, a situação delicada de um povo que se mantinha unido pelas suas tradições (cultura, costumes, religião, vestuário, língua, etc) mas era uma minoria nos países em que vivia.

Seis milhões de judeus exterminados não foi o suficiente para transformá-los em minoria oprimida, merecedora da compaixão e da solidariedade mundial após o ataque de um grupo tão ou mais perverso do que os nazistas. Pelo contrário, em uma inversão moral perversa, a extrema esquerda criou a narrativa do judeu nazista e do Estado genocida, que estaria praticando um novo holocauto contra os palestinos.

É preciso refletir sobre o que leva movimentos que supostamente defendem as minorias a ficarem ao lado do mundo árabe-muçulmano que reúne várias nações e mais de 1 bilhão de indivíduos contra um pequeno Estado e um pequeno povo que não ultrapassa 15 milhões de pessoas.

É que os judeus, ao construírem um Estado próspero e moderno, mais próximo das democracias liberais do Ocidente do que das teocracias vizinhas do Oriente Médio, abdicaram do papel de eterna vítima adequado à instrumentalização do discurso político demagógico.

Como bem escreveu o jornalista Allister Heath em artigo no The TelegraphIsrael é bem-sucedido e pró-América: é, portanto, um Estado ‘colonialista’, um Estado ‘opressor’ que deve ser destruído. O Hamas, apesar de ser misógino, racista, homofóbico e assassino, é visto por muitos idiotas úteis como pertencente à coligação ‘oprimida’ e, portanto, não deve ser criticado”.

Os judeus foram peregrinos em terra estrangeira durante séculos, mas muitos não se constrangem em fazer coro com o Islã e pregar a aniquilação de um Estado-nação que foi fundado para garantir a segurança do povo judeu após o Holocausto.

A Europa pós-guerra bem-intencionada foi moldada pela ideia do “Nunca mais”, mas fixou-se demasiadamente no antissemitismo de direita de ontem, não reparando no outro ovo de serpente que se chocava: o antissemitismo muçulmano respaldado pela extrema-esquerda.

Mesmo enfrentando uma guerra, talvez os judeus estejam mais seguros hoje em Israel do que em qualquer outra parte do mundo.

Quem acompanhou o caos social após o 7 de outubro, viu uma multidão enfurecida invadindo um aeroporto no sul da Rússia para atacar judeus, casas pichadas com a estrela de Davi, um senhor judeu morto por um militante pró-palestino, mulheres judias constrangidas por militantes pró-palestinas em um metrô, alunos judeus assediados, professores judeus afastados de seus cargos, reitoras de renomadas universidades dizendo que não poderiam condenar o discurso pelo genocídio de judeus sem analisar o contexto, etc.

Em recente pronunciamento de apoio a Israel, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou: “Não é preciso ser judeu para ser sionista, eu sou sionista” e continuou: “nenhum judeu estaria seguro no mundo se não houvesse Israel”. Biden e os outros líderes do mundo livre já entenderam: “Nunca mais é agora

 

Catarina Rochamonte é escritora e doutora em Filosofia, além de redatora e colunista de O Antagonista e Crusoé

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    1. Excelente o artigo, muito elucidativo1 Cabe ressaltar que, entre os judeufóbicos, estão também os antissistema sem ideologia definida, que vivem do vitimismo e são contra qualquer pessoa ou país que prosperam, como é o caso de Israel e dos judeus.

  1. Perfeito seu artigo. Seria ótimo que ele fosse colocado, por exemplo, numa prova de ENEM, ou num vestibular de Universidades Federais. E deixassem, definitivamente, de discutir letra de música de Caetano e outro absurdos que temos visto.

  2. Brilhante artigo. Senti falta apenas da ironia que é o fato de o Movimento Sionista e Israel terem sido criados sob uma forte inspiração esquerdista. Os chamados progressistas deveriam tomar Israel como um exemplo de sociedade (talvez a única) onde seus ideias de igualdade realmente funcionam.

  3. Muito bom artigo, Catarina, com mais dados pra iluminar essa onda de antissemitismo. Sempre que pergunto a um esquerdonazi ou islamo-esquerdista por que judeus não deveriam ter tido um estado pra chamar de seu, sobretudo considerando a perseguição de que sempre foram vítimas, nunca recebo qualquer resposta objetiva. Só embromation. É que eles não têm como responder objetivamente por falta de razão.

  4. Excelente artigo. De leitura obrigatória. Todavia convém não deixar de ter atenção que há, no germe do movimento populista nacionalista europeu de hoje, que ganha força no descontentamento de uma população não hostil a judeu algum, muito membro antissemita.

  5. esquerdista inocente útil” foi perfeita! Adoro ver esquerdista defendendo assaltantes e depois de assaltados choramingando a violência sofrida. Alguns poucos milhões de judeus mundo afora colecionaram centenas de prêmios Nobel. Contribuem na melhoria e no avanço civilizatório. O islã ainda apedreja mulheres e gays.

  6. Excelente e oportuníssimo artigo. Fico feliz em saber que a doutora Catarina está entre nós, eu lia seus artigos na Folha de SP onde a maioria dos comentários eram contrários a ela, e se este artigo de agora fosse escrito na FSP ela seria covardemente agredida pelos mesmos esquerdopatas de então.

  7. O mundo é responsável por Israel. Não houve um único lugar onde os judeus não sofreram violência e perseguição. Agora, cabe ao mundo inteiro garantir a existência de Israel e a seguranca do povo judeu.

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