ReproduçãoReitora da Universidade Harvard, Claudine Gay, responde sobre falas que pediam genocídio de judeus

A armadilha identitária

Criticado por vozes da própria esquerda e desmoralizado por episódios de antissemitismo, o progressismo woke deve manter sua sanha censória e sectária
29.12.23

Em seu discurso de posse, Jair Bolsonaro afirmou que seu governo vinha liberar o Brasil do “politicamente correto”. Qualquer que fosse seu entendimento da expressão, é certo que ele fracassou nesse intento: sob outros nomes e roupagens, a entidade que atendia pelo nome de “politicamente correto” seguiu viva e vigorosa ao longo dos quatro anos em que o bolsonarismo esteve no poder. Talvez tenha até vicejado com mais força nesse período: a presença de um inimigo declarado no Planalto renovou suas energias.

Neste ano que se encerra, sob o terceiro reinado de Lula, ela ganhou alguns carguinhos desdenhados pelo Centrão, que lhe servem bem para fazer barulho e causar pequenos constrangimentos ao governo (lembram da assessora da secretaria de Igualdade Racial tuitando sobre a branquitude da torcida do São Paulo?). Em sua origem e centro irradiador, a universidade americana (ou “estadunidense”, na linguagem decolonial), os vexames vêm sendo bem mais sérios, o que levou os otimistas a anunciar seu ocaso.

Opoliticamente correto” nunca teve contornos conceitualmente bem definidos, e desconfio que a expressão está caindo em desuso. Muito empregada por pessoas de direita para ridicularizar certos adversários do campo oposto, ela era uma forma demasiado genérica para se referir a um conjunto de ideias caras à esquerda pós-moderna que se preocupa mais com minorias étnicas e sexuais do que com o esquecido proletariado. Ao tempo em que o termo se popularizou, os corretos da política formavam (formam ainda, em novas configurações) uma corrente política cuja ação se concentrava na vigilância feroz sobre a linguagem cotidiana, tendência que chegou a seu paroxismo com a chamada “linguagem neutra”.

(Já que falamos de linguagem, um aparte estilístico: com seu pesado adjetivo de modo e um adjetivo fazendo as vezes de substantivo, “politicamente correto” é quase tão canhestro quanto “estadunidense“. “Correção política” seria mais simples e elegante. Mas não adianta protestar contra uma expressão já consagrada – e desgastada. Adiante.)

Hoje, essa esquerda é mais conhecida por termos que seus próprios adeptos empregam. Em inglês, eles se dizem woke (despertos, alertas). De forma mais precisa e frequente, diz-se que eles professam uma ideologia identitária, cuja prática política centra-se obsessivamente em certas identidades étnicas e de gênero. Em O progressista de ontem e do amanhã, Mark Lilla, cientista político da Universidade Columbia, observa um tique linguístico que sintetiza bem o modo de pensar identitário: a mania de abrir uma frase opinativa com uma declaração de identidade. “Como uma mulher trans, eu me sinto ameaçada por J.K. Rowling e Dave Chappelle.” “Como homem negro, eu me sinto ofendido com críticos literários brancos que não gostam de Torto arado.” (Os exemplos são meus, não de Lilla.)

Não se trata de uma fórmula anódina, diz Lilla. Ela serve para dizer ao interlocutor que a pessoa que fala ocupa uma posição especial na hierarquia dos oprimidos. “Digo isso como X” levanta “uma muralha contra questionamentos que, por definição, vem de uma perspectiva não-X”. Quando lançada na mesa, portanto, a carta identitária vem encerrar a discussão e calar o dissensão: quem não pertence ao grupo X não tem lugar na conversa. E quem pertence ao grupo X mas reivindica o direito de pensar fora dos parâmetros identitários torna-se um completo pária.

Desvela-se nessa simples expressão a natureza sectária do identitarismo – e também seu ímpeto censório, que é mais disseminado e opressivo do que eventuais “cancelamentos” de celebridades do showbiz deixam perceber.

Nos seis anos desde que Lilla publicou sua breve mas incisiva crítica à esquerda identitária, essa corrente transbordou de vez do ambiente acadêmico onde foi incubada para tomar boa parte da grande imprensa, do mundo das artes e de muitas empresas (na sigla ESG, o S de “social” às vezes pode ser trocado pela letra I). Também passou a ditar políticas públicas nos Estados Unidos, sobretudo na educação. O percurso dos nichos universitários mais radicais para o centro da vida pública está minuciosamente mapeado em The identity trap (A armadilha identitária, título que peguei emprestado para este artigo), obra lançada este ano pelo cientista político americano (nascido na Alemanha) Yascha Mounk, da Universidade Johns Hopkins, entrevistado por Caio Mattos em um número recente de Crusoé. Ao amálgama ideológico formado por ideias nem sempre bem digeridas de Frantz Fanon, Michel Foucault e Edward Said combinados a posts militantes nas redes sociais (em The identity trap, descobrimos que o hoje esvaziado Tumblr teve um papel inusitado nessa história), Mounk deu o nome de “síntese identitária”, expressão sóbria que não caberá no palanque de um Bolsonaro ou Trump (Mounk, aliás, é um analista acurado do novo populismo).

A ambição um tanto “sonhática” de The identity trap é resgatar o universalismo que, diz Mounk, faz parte da tradição da esquerda internacional e do movimento por direitos civis americano. No lugar de nos isolarmos no casulo identitário, deveríamos nos encontrar no campo comum de nossa humanidade. Isso não exige, aliás, que abdiquemos de nossa herança cultural ou de nossa identidade étnica. É o contrário: o identitarismo é que limita seus adeptos à clausura de uma ideia reduzida de identidade.

Entre os críticos mais consistentes do identitarismo, estão vários pensadores alinhados à esquerda – de progressistas moderados como Jonathan Haidt, John McWhorter e os já citados Lilla e Mounk a marxistas como Adolph Reed, Freddie DeBoer e o performático Slavoj Zizek (que citei em “O futuro será woke”, texto publicado em junho). A reação típica do povo woke a esses críticos vai do etarismo explícito – são todos boomers aferrados aos preconceitos d’antanho – à reivindicação de um estatuto moral angélico – como podem nos criticar, se estamos lutando por justiça social no TikTok?

Do meu modesto “lugar de fala” de homem branco politicamente desencantado, venho criticando a tara identitária há uns bons anos, em veículos diversos. Aqui em Crusoé, o melhor texto que publiquei a respeito foi, creio, “Crônicas da histeria progressista”, exame de três casos exemplares de insanidade woke no universo das artes e do showbiz. Tenho atacado sobretudo o gosto perverso que os identitários têm pela censura. Nos Estados Unidos, há até quem deseje revisar ou revogar a primeira emenda da Constituição, pilar da liberdade de expressão.

Há quem diga que eu poderei mudar de assunto em breve. Pois o ataque terrorista a Israel em 7 de outubro expôs uma rachadura no monólito da santimônia identitária: ficou claro que, no ideário da turma, a vítima tem sempre razão, a não ser que tal vítima seja um judeu. Em universidades de elite dos Estados Unidos, os novos progressistas fizeram protestos e manifestos contra Israel e não raro em favor do Hamas. Estudantes judeus foram hostilizados e agredidos. O antissemitismo escancarado tomou como pretexto a defesa da Palestina contra a agressão “colonial” dos sionistas. Muitas dessas manifestações, porém, começaram antes do ataque de Israel à Faixa de Gaza. Os velhos e crianças brutalmente assassinados, as jovens estupradas e sequestradas, os pacifistas reunidos em uma rave exterminados só por serem judeus – nenhum deles mereceu uma só palavra de solidariedade. Na hierarquia identitária, um dos povos historicamente mais perseguidos da história não pode ser contado entre as minorias oprimidas. O judeu é o supremo supremacista branco: inapelavelmente rico, opressor, colonialista.

Alguns figurões empresariais que faziam vultosas doações a universidades fecharam a torneira, condicionando o retorno dos investimentos a providências efetivas contra o antissemitismo. Chamados a depor no Congresso, os reitores não tiveram resposta satisfatória. A alegação de que não se pode coibir o direito de manifestação no campus não para de pé. Como bem observou John McWhorter no The New York Times, as mesmas universidades que coibiam qualquer palavra que pudesse causar “desconforto” aos estudantes negros – uma superproteção que configura uma forma de racismo, diz o autor – consideram permissível que alunos marchem pelo campus pedindo o genocídio dos israelenses. McWhorter, a propósito, é negro.

A reitora da Universidade da Pennsylvania renunciou ao posto, e a reitora de Harvard saiu desmoralizada do episódio (e de acusações subsequentes de plágio em artigos acadêmicos). Houve quem comemorasse tudo isso como um potencial momento de virada: o reino de idiotia e censura do woke estaria chegando ao fim nas universidades. Mas o identitarismo, tendo consolidado posições de mando na educação, não será desalojado tão facilmente. A mudança, se vier, será lenta.

Há outro fator de peso a considerar: Donald Trump tem boas chances de se eleger presidente no ano que vem. Mounk, entre outros analistas, tem observado um patológico mecanismo de retroalimentação entre o progressismo identitário e o populismo de direita, dois monstros censórios e autoritários. Bolsonaro deveria ter agradecido o “politicamente correto”: foi um grande cabo eleitoral.

Fatalmente, voltarei a falar do assunto em 2024. Feliz ano novo, leitor.

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

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  1. Muito bom seu artigo, e muito sério o assunto. Sério e ao mesmo tempo patético como ele tem tomado proporções absurdas, como quando se usa o termo "Buraco Negro", "caixa preta" etc. E eu nem quis falar mas sou canhota, escrevo com a mão esquerda, que por sua vez é o antônimo de direita, ou ainda, podemos discutir sobre o destro e o sinistro! Ai se a Janja ou a Marina fossem como eu! A discussão já teria chegado no Congresso.

  2. Cultura woke, o politicamente correto, esquerda identitária, feminismo são coisas execráveis, bandeiras de gente histérica e sem noção do ridículo. Só de pensar em ouvir que “estou no meu lugar de fala” me dá vontade de vomitar na pessoa. Sempre achei essas atitudes uma completa idiotice, mas infelizmente é um movimento que aumenta apenas pelo histerismo desse povo. Temos que lembrar que quem grita mais ganha mais

  3. Seu texto é perfeito e de fato será necessário retornar ao assunto muitas vezes. Aproveito para citar uma perda para os assinantes da revista, o Rui Goiaba . Com o seu humor peculiar, abordou muitas vezes esse tema com muita propriedade

  4. Esse texto é uma aula. Ele reflete todas as minhas visões me ajudando a organizar meu pensamento. Em meio a discussões sobre essas questões - tenho muitos esquerdistas entre os amigos e familiares- eu frequentemente ne calo com receio de não sabe alingar claramente minhas posições. Este e outros textos ddeste jornalista têm ne ajudado e esclarecido.

  5. O texto é ótimo, mas o último parágrafo é chave: enquanto a existência do "politicamente correto" for eficaz para o crescimento do populismo de direita (e vice-versa) será difícil extirpar ambos do espaço público, por maior que seja o dano causado por ambos a sociedade que deseja se ver livre de ambos.

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