A cúpula dos Poderes na promulgação da reforma tributáriaA cúpula dos Poderes na promulgação da reforma tributária: muitos incentivos para o conflito

O perturbado e dividido sistema político brasileiro

É possível ver três grandes correntezas institucionais direcionando o país: democratização, parlamentarismo e judicialismo
29.12.23

Fora os Bolsonaros, Lulas, Liras, Pachecos, Dinos e Barrosos da vida, o que é possível dizer sobre o espírito do sistema político brasileiro? Embora o noticiário foque nos personagens, em política, a forma como o palco está organizado é tão ou mais importante do que as interpretações individuais.

Há forças que delimitam o papel de cada um e a elas se dá o nome de instituições, ou regras do jogo, que são formadas a partir da interação de muitos eventos, tantos que, muitas vezes, é impossível isolar uma causa. É por isso que se diz que nenhuma ocorrência política é resultado de apenas um fator.

Nesse sentido, os Lulas e Barrosos não são comandantes da história, mas seu produto. Isso não significa que os líderes não possuem valor. Como Maquiavel ensinou, o príncipe virtuoso é exatamente aquele que melhor sabe lidar com suas circunstâncias, isto é, com aquela (grande) parte da vida que não se controla. Se estão ali é porque trabalharam duro e souberam dançar conforme a música.

Dito isso, é possível ver três grandes correntezas institucionais direcionando o sistema político: democratização, parlamentarismo e judicialismo. Elas não correm paralelamente, mas se cruzam, se alimentam e se esvaziam, criando ondas que, se bem interpretadas, ora levam a uma conjuntura, ora a outra.

A primeira é a democracia, não como regime político, de um sistema que prevê eleições regulares e mecanismos de proteção da liberdade individual, mas como disputa de visão de mundo. Apesar de o debate ideológico e radicalização não serem fenômenos novos, a capilaridade do debate e o acesso à arena pública têm sido brutalmente impulsionados pelas redes sociais.

O resultado tem sido a introdução de novos personagens no sistema político, como Nikolas Ferreira (PL/MG), youtuber e deputado federal mais votado da história de Minas Gerais, e o estímulo para que parlamentares eleitos nas franjas mais radicais permaneçam assim no exercício do mandato. Por se encontrarem sob intensa vigilância das redes, qualquer transação para o outro lado ou mesmo para o centro é imediatamente punida, com consequência posterior nas urnas, como experimentou a ex-deputada Joice Hasselmann, que caiu de mais de 1 milhão de votos em 2018 para pouco mais de 13 mil em 2022 após ser vista como traidora do bolsonarismo.

Essa situação tem reflexos na governabilidade. Que diga o presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira (SP), que, após indicar o novo ministro dos Esportes, suou sangue nas redes sociais para estancar uma gigantesca onda de críticas. Assim, Lula e o Centrão estão o tempo todo equilibrando pratos e, mesmo sendo aliados formais na coalizão, não abandonam as críticas abertas que um faz ao outro, fragilizando a base do governo no Congresso, que hoje se limita principalmente a questões econômicas.

Essa polarização tem relação com o segundo grande fenômeno que é a parlamentarização do país. Com os polos dominando a disputa presidencial, o Congresso tem reforçado um papel de moderação do Planalto. Isso acontece por meio do bloqueio e desidratação de agendas do governo e pelo aumento da capacidade do Legislativo tocar seus próprios interesses, criando uma dinâmica de competição entre os poderes.

Esse semipresidencialismo à brasileira cresce, portanto, porque tem legitimação social (parte da população espera que o Congresso a proteja do governo de plantão) e porque há atores interessados em trazer parte efetiva do processo decisório para o Legislativo, que depende menos das flutuações que as eleições presidenciais podem promover. Trata-se de uma mudança notável na nossa cultura política, considerando que, não faz muito tempo, o Congresso era comumente retratado como um estorvo à boa condução do país que só um presidente poderia fazer.

Normativamente, a ação de independência do poder Legislativo deve atuar como um fator de estabilização de todo o sistema pois, ao garantir que a agenda vencedora do processo eleitoral não será integralmente executada, proporciona alívio ao lado perdedor, mantendo-o jogando “dentro das quatro linhas” e impedindo o crescimento de um sentimento antidemocracia.

O aumento em importância do Congresso não teria ocorrido se a Constituição não estivesse desenhada para tanto. Muitos dos dispositivos usados por deputados e senadores já estavam previstos e bastou que se tivesse coragem de utilizá-los. Por exemplo, nos últimos dias, parlamentares aprovaram na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) um artigo que obriga o Executivo a obedecer a um cronograma para a execução de emendas parlamentares. O autor da ideia, deputado Danilo Forte (União/CE), afirmou, sob uma pesada chuva de reclamações do governo, que não fez nada mais do que aplicar os artigos 165 e 166 da Carta de 1988 que “impõe de maneira clara que é prerrogativa do Congresso Nacional elaborar, discutir, aprovar e determinar um calendário para o pagamento das obrigações de Estado.”

A terceira corrente é a judicialização da vida política. Ela também nasce na Constituição, que confere de forma inédita autonomia financeira ao Judiciário e lhe reserva amplas competências, dando aos ministros a palavra final sobre uma infinidade de assuntos numa intensidade que nunca se havia visto no Brasil.

A autocompreensão do poder detido por parte do STF, no entanto, só ocorreu com a prática, especialmente na solução dos impasses políticos que foram levados à Corte por minorias que perdiam disputas no Congresso Nacional. Foi um desfecho natural, portanto, que as decisões judiciais se politizassem e que os responsáveis pela escolha dos ministros (presidente + senadores) passassem a levar em conta as filiações políticas dos candidatos.

O ápice desse processo não está em uma decisão específica, como a do marco temporal ou do julgamento dos envolvidos nos episódios de 8 de janeiro, ambos muito polêmicos. O evento mais simbólico da consolidação do poder do Judiciário foi a escolha de Flávio Dino para o quadro de ministros, altamente influenciada pelos próprios magistrados, que fizeram lobby aberto sobre o presidente Lula e, depois, sobre os senadores. O STF efetivamente escolhendo seus próprios membros é a maior evidência de que o poder Judiciário quer fazer o seu próprio jogo.

Os interesses do STF estão voltados hoje para sua consolidação como “protetor” da democracia, papel que buscará desempenhar vigiando o debate público e cortando elementos considerados pelos ministros como radicais e atuando em favor de uma agenda progressista de políticas públicas que hoje tem dificuldades no Congresso. O presidente atual da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, tem ressuscitado um pensamento positivista segundo o qual a política é um assunto muito sério para ser deixado nas mãos dos políticos, havendo assim a necessidade de intervenção de iluminados.

Não é preciso ser analista político experiente para saber que todas essas questões contratam debates não apenas sobre quem vai ganhar a disputa política da próxima semana, mas em torno das próprias regras do jogo. Não é à toa, portanto, que o espírito do sistema político esteja dividido e perturbado.

Paradoxalmente, a história mostra que o Brasil é eficiente em fazer grandes composições entre suas elites. O tom dos discursos das cúpulas dos poderes vai nesse sentido desde o momento seguinte do anúncio da vitória de Lula. Entretanto, como se vê, o movimento das três correntes analisadas tem muitos conflitos contratados e, se for verdade que o palco influencia de forma determinando o papel dos atores, eles simplesmente serão impedidos de construírem a harmonia pretendida porque há muitos incentivos para o conflito. A forma tumultuada que a relação entre Executivo, Legislativo e Judiciário terminou 2023 é uma evidência que confirma essa leitura.

Isso é bom ou ruim? Uma pergunta como essa é tão inevitável como inapropriada, pois mira fazer um julgamento da História, algo quase sempre impossível. Mas é sempre proveitoso, especialmente em um final de ano, lembrar de novo a exortação que Maquiavel faz a Lorenzo de Médici na conclusão de O Príncipe como um desejo de torcida para que as coisas deem certo. Disse que a política tem seus caminhos, nem sempre fáceis de digerir, mas as coisas valem a penas se elas levarem a um resultado final que leve segurança e paz aos cidadãos.

 

Leonardo Barreto é cientista político e diretor da VectorRelgov.com.br

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  1. Infelizmente os 3 poderes estão juntos na busca pela harmonia entre eles, gerando a blindagem a corruptos e até inviabilizando investigações

  2. Interessante a análise e como ela tenta encontrar uma razão lógica para esse estado de coisas. Mas na verdade o que vemos é apenas o resultado incidental de uma série de fatos baseados em dois propósitos: a) Gerar oportunidades de ganhos pessoais (de poder e monetários); e b) Livrar os agentes das consequências do primeiro quando são descobertos. Tudo o mais gira em torno desses elementos. Inclusive a alienação e falta de lucidez daqueles que os elegem.

  3. Os artigos 165 e 166 da CF foram modificadas por ECs (entre outras, 100 e 105 de 2019, 126 de 2022) que não respeitaram o plebiscito de 1993 que escolheu o regime republicano presidencialista.

  4. De fato há um desarranjo entre os poderes no Brasil, que se vão acomodando desordenadamente. Todavia, como muito bem lembrou o autor, aqui as elites sempre encontram maneira de se encontrar num ponto comum para se manterem como elites. Esse é uma característica particular da nossa história de fracassos.

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