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Os heróis da inteligência artificial

Arquétipos dos filmes do universo Marvel podem nos ajudar a entender a nossa relação com as máquinas, cada vez mais inteligentes
29.12.23

Numa sexta-feira comum de novembro, o mundo da tecnologia foi virado do avesso. Samuel Harris Altman, 38 anos, o rosto mais famoso da indústria da inteligência artificial (IA), foi demitido pelo board da OpenAI, num movimento que pegou todos de surpresa, do próprio Altman até a maior parceira e financiadora da empresa, a Microsoft.

O produto mais popular da empresa, o ChatGPT, havia completado um ano de lançamento para o grande público e batido a marca, não confirmada, de 100 milhões de usuários. Em poucos meses, o mecanismo de conversa havia mudado o mundo para sempre e colocado gigantes como Google, Meta, Amazon e Apple na defensiva, tendo que explicar a seus investidores como tinham ficado para trás na corrida tecnológica mais importante da história.

A demissão de Altman foi logo comparada a saída de Steve Jobs da Apple, em 1985. A ironia é que o mítico Jobs foi o paraninfo dos formandos da Universidade Stanford em 2005, quando proferiu um dos discursos motivacionais mais conhecidos e repetidos de todos os tempos. Entre os estudantes que lotaram o Stanford Stadium naquele domingo, estava o jovem Sam Altman, com apenas 20 anos. Ele disse que foi naquele momento, ao ouvir Jobs, que decidiu em definitivo mergulhar no mundo das startups de tecnologia.

Em menos de duas décadas, o adolescente assumidamente gay criado em St. Louis, a cidade mais violenta dos EUA, virava o líder da indústria que, para muitos, vai redefinir a vida no planeta e a própria ideia do que é ser humano. Um titã da tecnologia que em nada se parece com Jobs, mesmo na demissão.

Com um patrimônio avaliado atualmente em meio bilhão de dólares, Sam Altman foi contratado como o CEO da OpenAI em menos de uma semana depois de ser demitido, depois de um motim de setecentos funcionários e da própria Microsoft. Enquanto Jobs ficou doze intermináveis anos fora da Apple, o que deu ao mundo a NeXT e a Pixar como conhecemos, Altman foi reconduzido em triunfo e, por esse feito notável, escolhido CEO do ano pela revista Time.

Um ano de ChatGPT já foi o suficiente para dar um giro completo nos maiores conglomerados do Vale do Silício, com o Google, que viu o primeiro risco existencial da sua ferramenta de busca aparecer e obrigar a empresa a lançar às pressas o Bard, um péssimo concorrente no início mas que vem recebendo atualizações constantes e pode ser uma pedra no sapato de Altman em 2024.

Também no próximo ano, a Apple promete jogar uma bomba atômica no mercado. Seu Vision Pro promete nada menos que uma nova era, a da “computação espacial”. Com o brinquedo no rosto, você vai ter, ao menos se os vídeos promocionais forem verdadeiros, a experiência mais imersiva já imaginada pelos defensores do Metaverso.

A Apple, com sua proverbial autossuficiência, praticamente não menciona a inteligência artificial, preferindo usar o termo “aprendizado de máquina” (machine learning), mas ela mesma reconhece que, por 3,5 mil dólares (mais de 17 mil reais, nos EUA), a primeira versão do Vision Pro será um luxo para poucos.

Até agora, tanto a Apple quanto a Amazon vêm tateando esse universo da IA, fazendo algumas declarações hiperbólicas para investidores não ficarem nervosos, mas entregando pouco. Mesmo assim, nunca se deve subestimar o poder de fogo das gigantes trilionárias da tecnologia. A inteligência artificial é um jogo para poucos.

As tecnologias baseadas em LLMs (“Large Language Models”) e no uso de imagens, sons e vídeos para processamento de soluções de inteligência artifical demandam investimentos bilionários em hardware, o que fez da NVidia a bola da vez em GPUs e semicondutores. A Microsoft, recentemente, anunciou que vai usar seus próprios chips para não depender de terceiros nessa corrida.

As possibilidades de aplicação da inteligência artificial são incalculáveis. Desde que o primeiro hominídeo fez sua ferramenta de pedra, há 2 milhões de anos, o homo habilis se descolava em definitivo dos outros primatas e mostrava que o que faz o homem é a sua capacidade de pensar e criar ferramentas para potencializar suas tarefas. O desenvolvimento contínuo dessas ferramentas desenhou o mundo atual e como vivemos nele, mas nunca houve uma máquina que pensasse igual ou melhor que os homens. Até agora.

Os homens sempre desenharam tecnologias para facilitar ou viabilizar seu trabalho, como Arquimedes, dois séculos antes de Cristo, o grande matemático, engenheiro e físico da Antiguidade que descobriu, entre muitas inovações, o poder da alavanca, uma das mais importantes ferramentas humanas por excelência.

Quando tentava explicar a função dos seus computadores, Steve Jobs dizia que eram “bicicletas para a mente, uma ferramenta para acelerar e multiplicar as possibilidades do pensamento. A inteligência artificial muda completamente a equação, já que ela pensa como nós e, em muito breve, vai elaborar pensamentos, ideias e soluções com velocidade e capacidade inimagináveis para a capacidade humana.

O que é, afinal, um ser humano? Um animal racional, que “pensa, logo existe”, como diria Descartes. Para os teístas, somos corpo e alma, mas para os materialistas, os desafios morais e filosóficos podem ser intransponíveis. Se somos apenas matéria, o que faz da máquina que pensa diferente de nós? Por que teríamos direito de controlar e dominar quem é mais inteligente e poderoso, se somos todos um punhado de átomos?

Não são questões triviais e, infelizmente, o mundo hoje parece pouco equipado para lidar com elas. Desde a aurora da humanidade, lidamos com realidades imateriais e questões metafísicas. A mais intrigante de todas, se há ou não uma inteligência não humana que tem ação sobre todo o universo ou, na visão judaico-cristã, é o próprio Criador.

Desde o chamado Iluminismo, a humanidade tem tentado expulsar de todas as formas qualquer resquício desse tipo de especulação do reino das ciências, sendo tratada como uma esquisitice supersticiosa e obscurantista, destinada a desaparecer com o avanço inexorável da ciência. A mesma que agora cria máquinas que podem nos erradicar do planeta, como nas distopias de ficção científica.

Foi o ateu convicto Isaac Asimov que criou O Homem Bicentenário, história do robô Andrew Martin (vivido no cinema por Robin Williams), um robô que tinha emoções e se casa com uma mulher humana. Ele lutava para ser reconhecido legalmente como homem, o que acabou acontecendo. Se não existe a transcendência da alma, por que um ser senciente, com autonomia e livre-arbítrio, deveria se submeter aos homens? Em pouco tempo, as máquinas superarão os homens em tudo, não apenas em força, mas em inteligência. Se não somos seres feitos pelo sopro divino, “imagem e semelhança de Deus”, seremos extintos pela lei da seleção natural.

Como lidar com esse cenário que pode levar, desde o desenvolvimento de tecnologias que estiquem a longevidade e a saúde do homem, que assumam todo nosso trabalho e possamos ficar livres de qualquer obrigação ou tarefa que não quisermos, até a nossa total extinção por um ser mais adaptado e avançado?

Há alguns exemplos arquetípicos que podemos roubar da franquia de maior sucesso da história do cinema, ou a quinta maior se ajustarmos os valores pela inflação: os filmes do universo Marvel, responsáveis por algumas das bilheterias mais impressionantes já registradas, mesmo em tempos de competição com YouTube, Netflix e todo tipo de diversão caseira em televisões, tablets e celulares cada vez melhores e mais inteligentes.

O líder dos Vingadores, Tony Stark, simboliza a relação de extrema confiança e otimismo no futuro. Ele não tem superpoderes, mas com sua inteligência e dinheiro criou a armadura do Homem de Ferro, que multiplica seus recursos de forma exponencial, e Jarvis, uma inteligência artificial avançadíssima e totalmente obediente e servil ao chefe. O futuro de otimistas como Tony Stark é do homem dominando a máquina e se tornando super-herói.

Já Bruce Banner é um cientista brilhante que, por descuido, toma uma carga excessiva de raios gama e, toda vez que fica nervoso, sua natureza mais animal transforma o nerd franzino no monstro verde que você conhece como Hulk. Um não controla o outro e ambos possuem uma relação problemática até que Banner, finalmente, funde sua natureza com seu “Mr. Hyde” e ambos passam a ter uma relação produtiva, mesmo que anormal. Como Banner, podemos ter muitos problemas, prejuízos e desastres, até conseguirmos dominar nossa natureza irracional e reativa, nosso “cérebro de lagartixa” com superpoderes.

Steve Rogers, o Capitão América, é um homem de tempos mais morais e profundamente cético em relação à tecnologia. Ele é literalmente alguém que ficou décadas congelado, desde o final da Segunda Guerra, voltando à vida já no novo milênio e tendo que se readaptar a um mundo muito diferente do seu, com códigos de conduta que as novas gerações desconhecem. Como Rogers, podemos ser céticos, até reacionários, até termos certeza de que controlamos totalmente as novas tecnologias. Se isso atrasar o desenvolvimento delas, que seja.

O Soldado Invernal, melhor amigo de Steve Rogers, é um ser atormentado por ter uma natureza modificada pela tecnologia, que controla seu cérebro, suas atitudes e ações. Ele quer lutar contra o domínio externo, mas enfrenta dificuldades intransponíveis e apenas como a ajuda dos Vingadores poderá se libertar do jugo da Hydra e tomar as próprias decisões. O futuro distópico do Soldado Invernal é de homens dominados e escravizados por máquinas malévolas.

De todas as possibilidades, fico com a do Dr. Estranho. Neurologista brilhante, ateu e arrogante como Tony Stark, Stephen Strange sofre um acidente e perde a capacidade motora de fazer cirurgias de alta precisão. Ele procura todas as possibilidades da ciência para curar suas mãos, mas é apenas quando entra em contato com a sabedoria milenar que consegue se tornar um ser completo e transcender o médico-celebridade, autocentrado e arrogante.

Strange não esquece tudo que sabia, pelo contrário, o gênio científico continua lá, mas agora em harmonia como todo conhecimento que tentamos, no Ocidente, esquecer nos últimos dois séculos e que promove o casamento sagrado e indissolúvel entre física e metafísica.

O futuro pode ser qualquer um destes, mas torço para que seja Estranho. 

 

Alexandre Borges é analista político de Crusoé e OAntagonista

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  1. recomendo a todos a leitura de " A Próxima Onda, inteligência artificial , poder e o maior dilema do seculo XXI " de Mustafa Suleyman e Michael Bhaskar para quem quiser ter uma ideia do avanço do IA e de como isso vai influenciar nosso futuro, para o bem ou para o mal.

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