Onofre Veras/Photo Press/FolhapressOperação da Polícia Federal durante a Lava Jato, no Rio de Janeiro, em 2020

O combate à corrupção no pós-Lava Jato

Pelo menos do lado do setor privado, os controles aumentaram, mais empresas foram punidas ou aceitaram fazer acordo
29.12.23

O ano de 2023 foi marcado por celebrações de aniversários de leis e tratados de combate à corrupção. Primeiro, foram os dez anos da Lei Anticorrupção brasileira. Depois, foram os 20 anos da promulgação da Convenção da Nações Unidas de Combate à Corrupção. Apesar dos aniversários, não sei se podemos dizer que o ano de 2023 nos trouxe motivos para comemorar.

Afirmar que a corrupção aumentou ou diminuiu é muito difícil. Muitos estudos tentam medir e quantificar a variação da corrupção nos países ou sua percepção pela sociedade, como é o caso do famoso índice de percepção desenvolvido pela Transparência Internacional. Porém, devemos reconhecer que nem mesmo as autoridades de investigação ou governo conseguem medir em quantas situações pode ter ocorrido corrupção e qual foi a dimensão de cada caso. Ora, basta pensar na probabilidade de um caso de corrupção ser denunciado ou descoberto pela polícia ou MP, depois imaginar quantos anos pode demorar uma investigação para ser concluída, depois fazer a denúncia ser aceita pelo juiz e depois superar a avalanche de recursos possíveis durante o processo criminal para culminar, enfim, numa condenação definitiva. Trabalho hercúleo, não? Pois é, de fato é mesmo.

Ainda que aparentemente sem fim, é um fenômeno que pode ser analisado de maneira mais objetiva, principalmente quando o separamos em grandes blocos, e fazemos uma análise pensado na nossa capacidade e estrutura institucional de combate à corrupção. Isso porque muitos fatores podem contribuir para o crescimento e manutenção da corrupção, bem como para se manter o quadro de impunidade. Vamos ao que aconteceu em 2023.

Começando pelo eixo da descoberta ou revelação dos casos que merecem investigação (e que por si só já ajudam muito na inibição da prática). As investigações começam com as denúncias dos casos, ou a partir do resultado de um trabalho investigativo. Ao contrário de países como os Estados Unidos, o Brasil não possui programas de incentivo pecuniário a denúncias. No modelo americano, os denunciantes que tiverem suas alegações comprovadas, podem receber um percentual do valor da condenação ou acordo proveniente dela. Aqui o projeto de lei que formalizaria a matéria ainda não vingou.

Outra fonte de informações e denúncias seria a imprensa. Em recente decisão do Supremo Tribunal Federal, porém, decidiu-se pela possibilidade de responsabilização de veículos de imprensa por declarações falsas dadas por entrevistados. Os casos revelados por Pedro Collor, Roberto Jefferson, ou até mesmo por Nicéa Pitta talvez nunca tivessem gerado a repercussão que tiveram se não fosse a imprensa. Para completar, também em 2023 tivemos o episódio envolvendo o professor de direito constitucional Conrado Hubner, que alega ter sido alvo de litigância retaliatória, após publicar artigo sobre possível corrupção institucional do Judiciário e o lobby advocatício. Em resumo, a liberdade de expressão e de imprensa, que já vinham sofrendo ataques, continuaram sendo alvo este ano.

O ano de 2023 ainda foi palco da discussão do PL Fake News e de discussão de “regulação das redes sociais” — tema que dá arrepios. Comum nas ditaduras, controlar o que se pode ou não ser dito, na minha terra é conhecido com censura. As redes sociais notoriamente podem ter um uso tóxico, mas talvez venham refletindo quem somos como sociedade. Basta lembrar que durante as eleições, a temperatura das discussões políticas não estavam só nas redes, mas nos almoços de família. Assim, não vale culpar o meio, ou o mensageiro. Usar essa desculpa para criar calço para aprovar lei que dê ao governo o poder de decidir quais conteúdos devem ser removidos, ou flexibilizar e banalizar a forma de obrigar os provedores a remover conteúdos é temerário. Minar e controlar a imprensa livre, não só corrói a democracia, mas também alimenta a corrupção e silencia vozes importantes.

O denunciante sem incentivo e com medo de represália acaba preferindo ficar quieto. Alternativamente, se alguém quiser expor um caso de corrupção através da imprensa acabará expondo o veículo à responsabilização, que pode se acuar. Realmente, 2023 foi desafiador nesse importante pilar de combate.

No campo das decisões judiciais, o grande destaque de 2023 foi a decisão que declarou a imprestabilidade das provas que sustentaram o acordo com a Odebrecht. A decisão foi impactante e reverberou na OCDE, que emitiu nota externando sua preocupação e afirmando que irá monitorar possíveis impactos na segurança jurídica desse tipo de acordo, além de questionar a própria capacidade do país de cooperar e obter assistência jurídica mútua nos casos de suborno estrangeiro. Aliás, tal decisão já começou a ter repercussões palpáveis, sendo a primeira delas o não recebimento da denúncia de corrupção contra Ciro Nogueira pelo STF.  Ainda no lado jurídico, podemos destacar a continuidade da prática da escolha de procuradores-gerais da República, os PGRs, fora da lista tríplice e a indicação de ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça com maior proximidade a políticos. Para não dizer que só tivemos más notícias, em dezembro, o ministro do STF Cristiano Zanin cassou decisão do STJ que havia considerado ilegais os relatórios de inteligência produzidos pelo Coaf e pedidos diretamente pela polícia, sem autorização judicial prévia. Agora é esperar qual será a decisão definitiva sobre o tema.

Em termos políticos, 2023 foi também marcado pela continuidade do Orçamento Secreto e negociação de cargos das estatais. Como disse um importante ministro da Suprema Corte dos EUA, Louis Brandeis, a “luz do sol é o melhor desinfetante“. Quando se dá transparência a atos e destinação de recursos públicos, abre-se espaço a questionamento, investigação e pensamento crítico sobre ações de governo. O fato de esconder ou dificultar acesso a dados sobre a destinação de recursos públicos é insumo poderoso para a manutenção da corrupção e da desigualdade no país, enfraquecendo a capacidade do eleitor de saber para onde estão indo os recursos da nação.

Se fôssemos fazer ao estilo do aplicativo de música Spotify, “o resumo do seu ano“, as músicas mais tocadas ou em tendência não seriam das melhores. Difícil pensar numa mudança significativa nos eixos de combate à corrupção.

Ainda assim, pelo menos do lado do setor privado, os controles aumentaram, mais empresas foram punidas ou aceitaram fazer acordo. Os investimentos em governança e compliance cresceram e existe uma preocupação da iniciativa privada em adotar modelos de negócios sustentáveis de uma maneira geral. Aliás, a Lei Anticorrupção realmente teve esse aspecto positivo de dar início à conscientização sobre o compliance.

Agora, nunca é demais lembrar que a corrupção envolve duas partes: uma pública e uma privada. Não adianta relaxarmos os controles do lado dos agentes públicos e criarmos um arcabouço exclusivo para punir o setor privado. Afinal, quando um não quer, dois não fazem.

 

Felipe M. França, Sócio do KMN Advogados, ex-diretor Global de Compliance Anticorrupção no Twitter

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
  1. Afrouxou-se a investigação do poder público e políticos em geral, para apertar a das empresas, mas depende da empresa, sempre há uma brecha para que a empresa investigada encontre uma banca com relações estreitas com o STF, sabemos bem como funciona essa máquina.

  2. Nós comentários vejo citarem o nome Marco Antônio!?!?!? Onde está a fala de Marco Antônio. Desculpas pela minha ignorância!

  3. O sistema de corrupção no Brasil sabe defender-se muito bem e acaba por entranhar-se em muitos níveis da sociedade, vai do político desonesto ao feirante que procura enganar na hora de dar o troco ou pequenos furtos praticados por quem não é ladrão profissional, apenas viu uma oportunidade no descuido de outra pessoa. Chegar num nível escandinavo de honestide levará uns 200 anos.

  4. O”supremo” permitiu que juízes e advogados pudessem partilhar ações. Só imagino a felicidade do escritório advocatício com os honorários sobre $10 bilhões das multas perdoadas

  5. Bom artigo mas infelizmente com essa sociedade retardada e os políticos corruptos incluindo os altos escalões do judiciário, esse é burrice ter esperança de melhoras.

  6. É louvável o otimismo do autor, mas ele se baseia infelizmente em duas premissas equivocadas: a) de que as empresas ( ou a sua maioria) é honesta e repudia a corrupção; e b) a maior parte da imprensa é independente. O ser humano é por natureza corrupto e egoísta. E nesse país levamos essa natureza a sério. Se não houver uma revisão da nossa arquitetura de Estado, que tenha o cidadão como o centro e seu bem-estar e liberdade como objetivos maiores, as coisas só irão piorar. Débito de cidadania.

    1. Perfeito Renata. Esse senso de cidadania e um conjunto sólido de princípios são a base para a revisão de qualquer sociedade. Bom saber que existe vida inteligente fora da bolha Bolsolulista.

    2. Revisão da mentalidade e cultura da sociedade brasileira tb. A única lei q é levada a sério por aqui é a Lei de Gerson.

Mais notícias
Assine agora
TOPO