Tomaz Silva/Agência BrasilProtesto contra a Copa do Mundo no Brasil, em 2014

O futebol brasileiro perdeu a inocência

Há tempos o esporte bretão não ia tão bem no Brasil, e, mesmo assim, segue muito mal
29.12.23

O Fluminense Football Club caiu de divisão pela primeira vez em 1996. Mas não caiu. Acusações sobre um esquema de suborno de árbitros levaram a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) a suspender os rebaixamentos no Campeonato Brasileiro daquele ano. Não adiantou. O tricolor carioca voltou a ser rebaixado no ano seguinte, e disputou a Série B de 1998, caindo de novo, daquela vez para a Série C. O Fluminense se tornou o campeão da terceira divisão do Campeonato Brasileiro de 1999 e, em mais uma histórica virada de mesa, subiu direto para a primeira divisão em 2000, quando foi disputada a famigerada Copa João Havelange.

Dezesseis anos depois, o Internacional de Porto Alegre caía pela primeira vez em sua história. E caiu mesmo, ainda que seus dirigentes tenham tentado subterfúgios na Justiça Desportiva para evitar o descenso. O Inter foi rebaixado, assim como o Cruzeiro, outro gigante, cairia pela primeira vez em 2019, e, neste 2023, o Santos. O futebol brasileiro mudou nas últimas duas décadas. Ainda que esteja longe do ideal, os clubes se profissionalizaram e os estádios melhoraram suas condições. O sentimento geral, contudo, é de desconfiança e frustração.

Os jogadores vão embora do país muito novos — Vinícius Jr., estrela do Real Madrid, jogou no time profissional do Flamengo por pouco mais de um ano —, os craques só reaparecem nos campos nacionais muito velhos, quando não têm mais fôlego para a Europa — e ainda se destacam, como Luís Suárez, Zé Roberto e Hernanes, nos casos mais recentes —, enquanto a seleção brasileira, sem Copa do Mundo há 20 anos, não desperta mais a mesma empolgação. Afinal, o futebol brasileiro está em crise?

Acabou o encanto, e não é de hoje. “Próximo do final do século 20, particularmente a partir de fins da década de 70, se começa a falar de uma ‘crise’ no futebol brasileiro”, dizem Ronaldo Helal e Cesar Gordon no em artigo “A crise do futebol brasileiro: perspectivas para o século 21”, publicado em 2002. “Essa crise manifesta-se, por exemplo, na queda progressiva do número de espectadores das partidas de futebol, no aumento da violência nos estádios (principalmente entre as chamadas ‘torcidas organizadas’), na evasão de jogadores para o exterior e no crescente endividamento financeiro dos clubes”, segue o texto.

Helal explica que sua pesquisa analisou a forma como a imprensa tratava o que se apresentava como crise no futebol nacional. Uma crise — ou várias crises diferentes, crônicas e cíclicas — que se tornou visível após um “declínio na relação do Brasil com a seleção”. Foi durante os anos 1930, quando se iniciou a Era Getúlio Vargas, com sua pretensão de promover a “unidade nacional”, que o futebol começou a se popularizar no Brasil. Impulsionado pela intelectualidade e pela imprensa, o esporte se transformou em um espetáculo de massa e foi incorporado à cultura popular. Desenvolveu-se uma percepção sobre o jeito brasileiro de jogar bola, de caráter harmonioso (uma alusão à mestiçagem), como uma dança. A ginga, enfim.

Particularmente durante as Copas do Mundo (inicialmente com a derrota em 1950, mas depois com as seguidas vitórias de 58, 62, 70), foi possível enxergar com bastante clareza a eficácia desta metáfora e do amálgama que se construiu entre ‘identidade, nação e futebol’. Transformado em universo metafórico da nação (a pátria de chuteiras), o futebol brasileiro tinha, com a seleção, a tarefa de expor ao mundo a suposta grandiosidade do país: tratava-se não apenas de conquistar títulos, mas de buscar ‘um lugar entre as nações‘”, analisa Helal em seu artigo.

 

O ápice e a queda

Durante os anos 1960 e 1970, esse futebol brasileiro viveu seu apogeu. Além do tricampeonato mundial do Brasil, o Santos de Pelé se sagrou bicampeão mundial de clubes e o Maracanã, erguido para a Copa de 1950, registrou seu maior público: 177.020 pagantes acompanharam a final do Campeonato Carioca de 1963. Seis anos depois, Pelé marcava seu milésimo gol e, em 1971, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) — precursora da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) — organizava o primeiro Campeonato Brasileiro nos moldes existentes até hoje.

O encanto começou a se perder em meados de 1974, quando o Brasil falhou na Copa. A política das federações regionais não conseguiu harmonizar os interesses nacionais e estaduais para organizar um calendário de jogos decente. “As tabelas eram feitas semana a semana. Você não sabia se o campeonato paulista ou carioca começaria no primeiro semestre ou no segundo”, lembra Helal.

A falta de organização levou O Globo a publicar uma série intitulada “A Decadência do Futebol Brasileiro” em setembro de 1978, com títulos como “Os torcedores, desencantados, abandonam o estádio”, “Jogos ruins, vaias, esta é a rotina” e “Politicagem: aqui está o principal problema do futebol segundo especialistas”. A pátria calçava chuteiras cada vez menores. O futebol nacional perdia a pureza.

O “milagre econômico” brasileiro chegava ao fim, contribuindo para o aumento da violência e da insegurança nos estádios do país. O jogos passaram a ser televisionados sem contrapartida para os clubes, que começaram a apelar para patrocinadores nas camisas como forma de sustento. Os jogadores iniciaram a migração para o mercado europeu na década de 1980. E as tentativas de solucionar os problemas acabaram transformando a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) — evolução, por assim dizer, da CBD — em alvo, na década seguinte, de investigações no Congresso Nacional, como a CPI da Nike.

Hoje, a CBF passa por mais uma de suas periódicas crises de comando. Ednaldo Oliveira foi destituído por questionamentos sobre sua eleição. Seu antecessor, Rogério Caboclo, tinha sido afastado após denúncias de assédio sexual — a Justiça o declarou inocente em todos os processos. Cartola histórico da entidade, Ricardo Teixeira foi banido do futebol pela Fifa em 2019, sob acusação de receber propina. Marco Polo del Nero teve o mesmo destino e José Maria Marin chegou a ser preso.

Todo esse desgaste se intensificou mais recentemente, quando a camisa amarela da seleção passou a ser empunhada como símbolo de um grupo político e os jogadores do Brasil acabaram envolvidos — ou se envolveram deliberadamente — no jogo partidário. Naturalmente que os fracassos da seleção em mundiais não ajudaram em nada nesse cenário.

Atualmente, a seleção aguarda que o treinador italiano Carlo Ancelotti cumpra uma promessa que nem se sabe se foi feita. Espera-se que o técnico deixe o Real Madrid para comandar o único selecionado pentacampeão do mundo, enquanto o instável Fernando Diniz — ou metade dele, já que o treinador se dividiu entre seleção e Fluminense — vai estabelecendo recordes negativos no comando do nosso escrete.

 

Só acaba quando termina

Até aqui veio a parte ruim. Porque, apesar de tudo, o futebol brasileiro está muito melhor do que já foi em décadas recentes. Os clubes nacionais retomaram a hegemonia no continente e ganharam as últimas cinco edições da Libertadores da América.

Em 2023, o Campeonato Brasileiro estabeleceu a melhor média de público de sua história. Foram 26.524 pagantes por partida, mais do que a média de 22.953 de 1983, ano que detinha o recorde até então. E, apesar das críticas à elitização do futebol, é difícil imaginar que a melhoria da qualidade dos estádios, como o Allianz Parque, a Neo Química Arena, a Arena do Grêmio e mesmo o reformado Maracanã, não esteja ligada ao resultado.

O que mais impressionou David Dein e os executivos do Arsenal, contudo, foi um detalhe que não podia ser visto do campo: os banheiros. Na batalha que Dein travara por décadas, ele tinha finalmente conseguido um avanço”, contam Joshua Robinson e Jonathan Clegg em The Club (Houghton Mifflin), ao tratar de uma das últimas reformas do estádio de Highbury, onde o inglês Arsenal jogou de 1913 a 2006, até se mudar para o moderno Emirates Stadium.

Os banheiros tinham se tornado uma obsessão para os diretores do Arsenal, contam os autores do livro, que explica “como a Premier League inglesa se tornou a força mais selvagem, rica e disruptiva do esporte”.

Para pessoas como Dein [vice-presidente do Arsenal], que lembravam dos dias do hooliganismo, banheiros eram muito significantes. Eram a primeira coisa que os torcedores destruíram quando a tensão subia. E, mesmo quando eles não o faziam, os banheiros continuavam sendo buracos fétidos infernais, uma mensagem subentendida que dizia aos torcedores exatamente o que as autoridades inglesas do futebol achavam deles“, detalha o livro.

O futebol inglês também atravessou sua crise na década de 1980. Uma crise técnica e social. Em 15 de abril de 1989, 95 torcedores do Liverpool morreram pisoteados no malconservado e superlotado Estádio Hillsborough, em Sheffield, onde ocorreria partida contra o Nottingham Forest pela Copa da Inglaterra. Outras 766 pessoas ficaram feridas e duas das vítimas daquele dia morreram como consequência da tragédia meses depois.

Quatro anos antes, 39 pessoas morreram no confronto entre torcedores do Liverpool e da Juventus que se reuniram para a final da Copa dos Campeões da UEFA (hoje Champions League) no Estádio de Heysel, da Bélgica, após parte da arquibancada ceder. Como resultado, os clubes ingleses passaram cinco anos proibidos de frequentar competições europeias.

Um dos diretores do Arsenal, Ken Friar costumava dizer que “se você trata pessoas como animais, eles vão se comportar como animais”. “O Arsenal iria tratar seus torcedores mais do que como seres humanos. Iria tratá-los como consumidores”, descrevem os autores de The Club. Dein foi um dos responsáveis por aumentar de 10 para 15 minutos o tempo de intervalos entre o primeiro e o segundo tempo das partidas de futebol e também cuidou de duplicar o número de urinóis no estádio do clube londrino.

 

As ligas

Foi sob essa perspectiva que os diretores do Arsenal se uniram aos pares de Manchester United, Liverpool, Tottenham e Everton para fundar a Premier League em 1992, respeitando um pilar fundamental: independente de quanto dinheiro entrasse (principalmente de direitos de transmissão), a divisão entre o que receberiam o vencedor do campeonato e o último colocado ficaria em torno de 1,6 para 1. Na França e na Alemanha, por exemplo, essa relação era de 3 para 1 à época — no Brasil, é de 6 para 1 atualmente.

Resultado: o valor somado dos 20 clubes da Premier League subiu de 100 milhões de dólares em 1992 para 15 bilhões de dólares em 2018. Hoje, o campeonato inglês é transmitido para 185 países — a ONU reconhece a existência de apenas 183 deles. As oportunidades de negócio atraíram bilionários de todo o mundo, desde oligarcas russos até magnatas do petróleo. E foi tudo copiado da liga de futebol americano dos EUA.

Assim como ocorreu mais recentemente na Inglaterra, cinco clubes americanos se uniram na década de 1930, quando o futebol ainda engatinhava no Brasil, para formar a National Football League (NFL). Os donos de News York Giants, Chicago Bears e Washigton Redskins (hoje Commanders), entre outros, esqueceram as divergências e a rivalidade para pensar em um bem maior: a sobrevivência do esporte.

Além de fazer de cada partida um espetáculo maior do que a disputa entre duas equipes, os dirigentes da NFL chegaram a mudar regras para aumentar a possibilidade de marcar pontos, tornando o jogo mais atraente — para mais detalhes sobre o empolgante caminho da liga de futebol americano, leia The League (Basic Books), de John Eisenberg.

Os cartolas ingleses que criaram a Premier League se espelharam declaradamente na NFL. Enquanto isso, os cartolas brasileiros ensaiam há décadas, sem sucesso, um movimento similar. Hoje, há duas ligas em formação no Brasil, a Libra, que reúne clubes como Flamengo, Corinthians, São Paulo, Santos, Palmeiras, Grêmio, Atlético-MG e Bahia, entre outros, e a Liga Forte Futebol, encabeçada por Fluminense, Internacional, Fortaleza e Athletico Paranaense.

Esses dois grupos negociam os direitos de transmissão dos jogos e pretendem encurtar a distância entre os clubes que ganham menos e os que recebem mais. A meta é derrubar a diferença do atual 6 para 1 a uma relação de 3,5 para 1. Isso seria alcançado por meio do estabelecimento de um valor base igual para todos os clubes. O resto dependerá da performance dos times e da audiência que cada um atrair. É o mesmo modelo da Premier League.

O futebol brasileiro não tem mais inocência ou pureza na qual se escorar. A mística se perdeu e lá se vai o tempo em que o talento ganhava jogo sozinho. É preciso suar a camisa, se organizar e fazer dinheiro para sobreviver no mercado da bola. E nenhum clube vai conseguir fazer isso sozinho.

Se não for em nome do futebol brasileiro, não será em nome de ninguém.

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  1. Para mim o futebol brasileiro não está mais em crise. O futebol brasileiro está morto. Restaria acreditar que a Dama Vermelha poderia aceitar a tarefa de tentar sua ressurreição. Embora saibamos que o Snow não foi mais o mesmo depois de ressuscitar.

  2. Magistral a última edição do ano da Crusoé! Só faltaram seus magistrais humoristas: Agamenon, Tosetto, Goyaba (onde vc anda, Ruy?). Mil parabéns à revista!

  3. Não há nada em nome do futebol brasileiro. A mentalidade tacanha dos dirigentes dos clubes nacionais (bem como do nosso empresariado, diga-se) é "farinha pouca meu pirão primeiro". Ninguém deseja uma liga forte, mas sonha com sua própria hegemonia, mesmo que sobre escombros fumegantes.

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