Esquete sobre a Natividade do grupo humorístico israelense Eretz NehederetAs "três pessoas sábias de Berkley" visitam o menino Jesus: o humor do Eretz Nehederet, show popular da TV israelense - Foto: Reprodução de tela

A trincheira do humor

Em Israel ou na Ucrânia, as piadas têm uma função a cumprir em meio à guerra
29.12.23

Jesus acabou de nascer e está na manjedoura, com Maria e José ao seu lado. Maria está cansada e quer dormir, mas visitantes encapuzados aparecem. São “as três pessoas sábias de Berkley”: dois estudantes de cabelo colorido e gênero indefinido e um professor vestido com um terno de veludo verde.

José aceita conversar um pouco e conta que três reis magos acabam de passar por ali, predizendo que seu filho será o Rei dos Judeus. Prontamente, ele é repreendido pelo professor americano: “Eu não vejo nada de judeu aqui. Os judeus só chegarão a esta terra em 1948.”

“Como um poder colonial!”, acrescenta sua aluna.

Maria e José ficam confusos. “Como assim? Nós somos judeus!” O professor os corrige novamente: “Vocês são palestinos, os habitantes originais desta terra.”

A conversa prossegue. O acadêmico de Berkley anuncia que Jesus vai morrer cedo, assassinado pelos judeus. Agora são os seus alunos que ficam confusos. “Mas então os judeus já estão por aqui?” De jeito nenhum, diz o professor. O aluno continua confuso: “Então são os palestinos que vão matar Jesus?”

“Não, os palestinos jamais vão machucar alguém! Especialmente o Hamas!”, afirma o professor. Ele promete explicar na sua próxima aula como os judeus vão matar Jesus, mesmo sem existirem.

Esse esquete foi apresentado nesta semana pelo programa humorístico mais popular da televisão israelense, o Eretz Nehederet (expressão que pode ser traduzida como “um país maravilhoso”).

No ar desde 2002, o show começou a chamar atenção mundo afora depois do ataque de 7 de outubro a Israel, especialmente por zombar da imprensa e dos intelectuais do Ocidente que apoiam o Hamas e culpam os judeus que foram  vítimas do grupo terrorista pela violência que sofreram.

A primeira sátira a ganhar repercussão internacional foi dirigida ao canal britânico BBC, que atribuiu apressadamente às Forças de Defesa de Israel a explosão de um hospital na Faixa de Gaza – sendo que pouco depois ficou provado que os danos decorreram da queda de um foguete disparado pelo grupo fundamentalista Jihad Islâmica contra o território israelense.

 

reproduçãoreproduçãoNo programa humorístico da TV israelense, a ONU defende o Hamas pela  prática da “rapesistance”, a resistência através do estupro – Foto: Reprodução
 

Depois vieram piadas sobre os jovens ao mesmo tempo woke e antissemitas da esquerda global, sobre as funcionárias da ONU que falharam em repudiar o estupro de mulheres pelo Hamas e sobre as reitoras de três grandes universidades americanas que se recusaram a dizer que ameaças de genocídio contra judeus infringiam os códigos de conduta de suas instituições.

Em todos os casos, o deboche foi ao ponto.

O estudante estúpido (o mesmo do esquete sobre a Natividade) entende que o terrorista do Hamas vai lhe oferecer uma festa na cobertura caso ele visite Gaza, em vez de atirá-lo do telhado por ele ser gay.

As funcionárias da ONU inventam o conceito de “rapesistance” – uma fusão das palavras “rape” (estupro) e “resistance” (resistência) – para justificar a violência contra mulheres judias.

As reitoras das universidades renomadas são deslocadas para Hogwarts, o colégio de bruxos da série Harry Potter, onde o mago Dumbledore submete seu corpo docente a um inquérito: propor o genocídio de mudbloods (bruxos nascidos de gente comum) desrespeita os códigos de conduta das fraternidades mágicas? Como sentenciou a internet, esse quadro foi mais sutil e bem mais engraçado do que aquele apresentado pelo célebre humorístico americano Saturday Night Live na mesma semana, sobre o mesmo assunto.

Vale notar que os líderes israelenses não são poupados pelo grupo humorístico, embora essas piadas repercutam menos fora de Israel. O primeiro ministro Benjamin Netanyahu, especialmente, é retratado como alguém disposto a tudo para se desvencilhar de qualquer responsabilidade pela tragédia de 7 de outubro.

Mas não são apenas os israelenses que respondem com humor às circunstâncias trazidas pela guerra.

Em junho do ano passado, quatro meses depois do início da invasão da Ucrânia pelo exército russo de Vladimir Putin, o jornal The New York Times visitou um clube de comédia na cidade ucraniana de Lviv.

Oleksandr Dymytrovych, um dos jovens que se apresentavam, explicou a situação: “Antes do primeiro show, pensamos que talvez não fosse o momento certo para se fazer comédia. Estávamos petrificados. Mas depois de subir pela primeira vez ao palco percebemos que as pessoas querem rir. Elas querem ouvir piadas sobre os nossos inimigos.”

A guerra não cessou desde então. Está prestes a completar dois anos. Depois de uma contraofensiva que não surtiu os efeitos esperados, o exército ucraniano atravessa um momento de incertezas, com a redução do envio de armamentos e dinheiro por aliados ocidentais. Os ataques humorísticos contra os russos e contra Putin, contudo, não perderam nenhuma intensidade.

O único comediante ucraniano que chegou a desfrutar de alguma fama além das fronteiras de seu país foi Volodymyr Zelensky – hoje presidente do país e símbolo da resistência aos invasores. Não é da televisão ou dos palcos que vêm as piadas de guerra da Ucrânia, mas das redes sociais, na forma de memes e postagens curtas.

Perfis como os dos grupos Saint Javelin e Ukrainian Memes Forces estão entre os mais ativos, mas algumas postagens que se tornaram virais foram feitas pela conta oficial do governo ucraniano no X, que tem 2,2 milhões de seguidores e também é usada para combater fake news espalhadas pela Rússia.

A jornalista ucraniana Olga Tokariuk, bolsista do Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo, publicou no início deste mês de dezembro um estudo sobre o papel do humor na comunicação de guerra.

Ela identificou seis funções que o conteúdo humorístico vem cumprindo em seu país: promover a união interna e ajudar a lidar com os tempos difíceis; despertar a atenção de grandes audiências; servir como ferramenta de soft power para angariar simpatia; fazer o inimigo menos assustador, tornando-o ridículo; expor o absurdo de campanhas de desinformação patrocinadas pela Rússia; combater a fatiga de guerra e atrair o interesse para histórias humanas.

 

Meme ucraniano sobre Vladimir PutinMeme ucraniano sobre Vladimir Putin“Putin esperando a Ucrânia finalmente se render”, meme de guerra que viralizou Foto: Reprodução/X/Ukrainian Memes Force
 

Pode-se atribuir muitas dessas funções também ao humor israelense, com as devidas adaptações. Há uma diferença significativa, no entanto: os ucranianos não precisam lidar com uma história milenar de perseguição como grupo religioso, político, cultural ou étnico.

É verdade que Vladimir Putin declarou, ao dar início à sua guerra, que “a Ucrânia não existe” como entidade separada da Mãe Rússia. A negação do direito a um Estado autônomo, contudo, não se traduz, nem mesmo por parte do tirano russo, num “antiucranianismo” – ao passo que o antissemitismo está espalhado pelo globo (sobre isso, leia nesta edição de Crusoé o artigo de Catarina Rochamonte). 

Por isso o humor do Eretz Nehederet não se volta apenas contra o inimigo que está logo ao lado, o fundamentalismo islâmico que deseja aniquilar Israel, mas também contra personagens como jornalistas britânicos, professores e alunos de universidades caras dos Estados Unidos e burocratas da ONU. Por isso vários de seus esquetes atacam ideias perversas ou absurdas que têm os judeus como alvos específicos, apenas por serem judeus.

Como observa o historiador cultural Jeremy Dauber no livro Jewish Comedy – A Serious History, há boas razões para que uma tese clássica sobre o humor judaico veja nele “uma resposta à perseguição – uma espécie de estratégia defensiva, uma demonstração de resistência sob circunstâncias trágicas”.

Ou, como diria o comediante Mel Brooks, os judeus desenvolveram um senso de humor peculiarmente agudo porque “se o outro sujeito estiver rindo, não conseguirá espancar você até a morte”.

Embora fosse judeu e se apoiasse num amplo repertório de anedotas judaicas, Sigmund Freud, o pai da psicanálise, chegou a conclusões um pouco diferentes ao desenvolver sua teoria do humor.

Segundo ele, produzimos graça e damos risada para liberar uma energia  usualmente reprimida em nossa vida social. Pelo humor, damos vazão tanto a impulsos defensivos quanto agressivos.

Isso significa que a ligação entre guerra e humor pode ser muito mais íntima do que parece à primeira vista.

As armas utilizadas nos dois tipos de “agressão”, no entanto, continuam sendo bem diferentes assim como os seus efeitos.

Que em 2024 aqueles que escolhem as armas do riso possam levar a melhor.

 

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  1. Excelente comentário de Mel Brooks. O humor judeu é um tipo de humor muito inteligente, como o de Groucho Marx e seus irmãos.

  2. A sátira, o sarcasmo são armas letais; um colega meu, médico bolsominion, ameaçou-me de morte (e aos meus filhos) devido a minhas sátiras cortantes sobre o negacionismo psicopata...

    1. Proverbio latino: Ridendo castigat mores Humor sempre teve dupla função: crítica social e esconder a tragédia por trás do riso.

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